A Madrugada que eu esperava: “o direito da liberdade vem com o dever da memória”

“A Madrugada Que Eu Esperava” esteve em exibição no Teatro Maria Matos, em Lisboa, neste ano de comemoração dos 50 anos do 25 de abril. 

Fotografia de Marta Ricardo.

O musical leva a temática dos 50 anos do 25 de abril ao palco através de uma história de amor, que começa em plena ditadura (1971). Trata-se de um elenco que conta com as artistas Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes, mas também com Diogo Branco, Brienne Keller, Dinarte Branco, JP Costa, João Maria Pinto, Jorge Mourato, José Lobo, Mariana Lencastre e Maria Henrique.

Temos Olívia (intepretada por Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco, intercaladamente), muito convicta a fazer tudo o que pode para terminar com a ditadura… e depois existe Francisco (Diogo Branco), que tem um pai da PIDE… Sabemos que Francisco sonha em ser ator de comédia e ir contra o que o pai aprova… e também sabemos que Olívia poderá ensinar umas quantas coisas ao Francisco…

E o resto é história! Ou não! A narrativa, embora tenha acontecido há mais de 50 anos, transmite-nos ensinamentos muito importantes para os dias de hoje. O Jornal desacordo foi saber todos os pormenores junto do elenco.

A mensagem

Esta peça é para relembrar a época da Revolução dos Cravos? 

Jorge Mourato (pai da Olívia e da Clara): Disse muito bem: Relembrar. Mais do que relembrar é não fazer esquecer, porque como se diz na peça a democracia e a liberdade não são garantidas e de tempos em tempos é preciso reavivar memórias e lembrar que houve gente que sofreu, morreu ou esteve presa para hoje em dia estarmos aqui passados 50 anos e fazer aquilo que gostamos e que queremos e passar a mensagem de que nada é garantido e 50 anos de liberdade são 50 anos de algo que não tem preço.

Maria Henrique (Olívia mais velha): e infelizmente é tudo cíclico. As coisas acontecem, há uma necessidade de lutar por elas, mas depois volta tudo ao normal e depois há gerações mais novas que nem fazem ideia do que aconteceu. É muito importante que essas gerações, apesar de este espetáculo, achamos nós, não ser um espetáculo não ser para explicar a história do 25 de abril, mas uma história de amor em tempo de revolução, mas pelo menos para alertar as novas gerações de que as coisas acontecem e que se calhar estão quase a acontecer na Europa… outra vez. É muito importante as novas gerações estarem a par destas coisas, sutilmente, no meio da história da música.

Fotografia de Marta Ricardo.

Notam que há uma responsabilidade acrescida em abordar esta temática, considerando que muitos jovens não viveram estes tempos?

Maria Henrique (Olívia mais velha): Eu como atriz, e acho que nós atores, temos um bocadinho essa missão de passar mensagens, de fazer lembrar. E há uma coisa que me assusta muito.  Há países que estão a tentar tirar da sua história o Holocausto. Dizendo que o Holocausto não existiu. Atenção, volto a dizer que este não é um espetáculo. O propósito é fazer um espetáculo para explicar exatamente tudo o que aconteceu no 25 de Abril. É uma história de amor que percorre o tempo do 25 de Abril e desperta para algumas coisas. Porque também é bonito fazer com que as pessoas saiam a pensar. Que queiram pesquisar.

Diogo Branco (Francisco): Ás vezes pode ser difícil relacionarmo-nos com uma coisa que não nos aconteceu. Hoje em dia, uma pessoa que nasceu, se calhar tem 20 anos, não tem bem noção do que é não poder fazer aquilo que quer. Não poder dizer aquilo que quer. Sabem o que aconteceu, mas não têm a perfeita noção. Eu, por exemplo, acabei por não viver. Mas vivi muito perto da história, apesar de não a ter vivido. Portanto, imagino o que é não poder fazer aquilo que eu quero. No ponto de vista de sempre fazer bem às pessoas, da bondade. Não é fazer o que eu quero. Mas acho que os jovens sabem a história. Mas alguns estão sem grande noção do que é, na realidade, ficar sem a liberdade. Então é importante relembrar esse assunto.

O que distingue esta peça das restantes já feitas sobre o 25 de abril?

Bárbara Tinoco (Clara/Olívia): Olha, eu acho que para já tem música nova. Ou seja, não fomos buscar…  Tem lá o imaginário, mas como fizemos canções novas, acho que isso…  Acho que é um espetáculo que fala de coisas muito pesadas de uma maneira leve. Que é a minha forma de arte preferida. Ou seja, eu gosto de coisas que são tão complexas mas que conseguem ser contadas com simplicidade. São as minhas coisas de arte preferidas. Há pessoas que gostam de outras coisas. Eu gosto mais disto e acho que nesse sentido o espetáculo está bem conseguido. É um espetáculo para todas as idades. A minha mãe vai retirar uma coisa, a minha irmã Beatriz, que tem 15 anos, vai retirar outra e uma criança que vem a ver vai retirar outra.

Carolina Deslandes (Clara/Olívia): acho que cada comemoração do 25 de Abril é fundamental. Principalmente das pessoas que fizeram concessões de intervenção. Que fizeram parte da revolução em tempo real. Que estiveram lá, que lutaram contra o sistema, mas nós fazemos parte aqui de uma fação muito importante. Que é quem não viveu o 25 de Abril e quem não se esquece do 25 de Abril. […] A minha, a da Bárbara, as gerações abaixo. [É um dever nosso] preocupar-nos com as condições que nós temos para viver a nossa vida e para dar a todas as pessoas que habitam o nosso país. Que é importante querer saber e preocupar-nos.

Fotografia de Marta Ricardo.

Processo criativo

A peça foi escrita por Hugo Gonçalves, antigo ISCSPiano, a convite de Bárbara Tinoco:

Hugo Gonçalves: Foi a Bárbara que me convidou. A Bárbara tinha lido um livro meu na altura, o “Filho da Mãe”, e só disse que queria fazer um musical. E depois eu propus-lhe esta ideia, a ela e a Carolina, esta história entre o Francisco e a Olívia e passada nesta época. E elas disseram que sim. […] é uma época de grandes paixões, muito recambulesca, muito dramática, que, portanto, daria a uma boa história, e […] elas as duas são vozes contemporâneas, são ouvidas por muita gente não só quando cantam, mas também em alguma coisa, e, portanto, seria interessante, através da voz delas, ter uma visão mais contemporânea do 25 de Abril.

Considerando essa sua obra “Revolução”, quanto é que lhe diz a temática do 25 de abril de 1974?

Hugo Gonçalves: A gênese de um criador é a liberdade, não é? A liberdade. E se o 25 de Abril não tivesse acontecido, eu não teria escrito esta peça, nem teria escrito o livro. Tenho uma grande vida de gratidão para as pessoas que o fizeram, porque eu já nasci em democracia, portanto, simplesmente desfrutei dela e muitas pessoas perderam a vida e foram torturadas e perderam a liberdade para que outros pudessem ter a liberdade e, como tal, já tendo eu nascido depois da Revolução, a verdade é que os meus professores  na escola, as pessoas que me educaram, todas elas tinham vivido a ditadura. Portanto, era algo que estava presente para as gerações mais novas, que já não têm quase contato com esse passado. Eu acho que é importante recordar, especialmente quando se começa a questionar a democracia,  como estamos a viver agora, mas também há outro aspeto, que eu estava a dizer há bocado,  que além do lado político, naquele tempo as pessoas viviam com uma grande paixão,  viviam com muitos ideais, o tempo a seguir à Revolução do 25 de Abril era um tempo de grandes convicções, de grandes paixões, de histórias incríveis. Lembro-me há uns tempos de ouvir o Herman José dizer que um dia depois do 25 de Abril valia 10 anos no tempo normal. E nós queríamos também recuperar isso, esse gosto.

Fotografia de Marta Ricardo.

Banda ao vivo

“A Madrugada Que Eu Esperava” contou também com uma banda ao vivo, composta por Feodor Bivol (Guitarra), Marco Pombinho (Piano), Miguel Casais (Bateria), Rui Pedro Pity (Baixo) e Sandra Martins (Violoncelo).

Qual é a diferença entre a vossa tarefa aqui e o vosso trabalho habitual? 

Feodor Bivol: Para a maior parte de nós isto é uma coisa nova, nós somos todos músicos profissionais, mas tocamos mais com artistas. Eu sinto que há muita coisa que acontece aqui para além das músicas; para nós o mais fácil é tocar as músicas. Mais complexo são os momentos musicais que acompanham as cenas. Temos de estar super atentos ao que é que está a acontecer, quando é que entra uma parte, quando é que entra a outra parte e isso é uma coisa que normalmente não acontece assim tanto nos concertos de música ao vivo.

Rui Pedro Pity: Temos de estar atentos às entradas e às saídas porque o instrumental que estamos a fazer nestas partes depende dele e quando rodam os prismas. Nós quando estamos em concerto não temos nada disso.

Fotografia de Marta Ricardo.

Músicas autorais

Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes, para além de fazerem parte do elenco e terem de, obviamente, aprender a ser atrizes, puseram Dinarte Branco e Jorge Mourato a cantar e ainda compuseram todas as canções do espetáculo.

Foram as duas, em conjunto, a compor as canções da peça?

Carolina Deslandes: Sim, nós fechámo-nos em minha casa e dividimo-nos assim em equipas  com o Pedro Morato, com o Feodor […] e dividimo-nos assim por grupos e fomos fazendo cada uma uma canção para um momento diferente: “olha, a mim apetece-me hoje fazer a canção do Francisco, a mim apetece-me fazer a canção da Revolução” e a canção que fizemos juntas acabou por ser a canção das irmãs que é um momento em que nós estamos as duas a cantar juntas.

A música de intervenção ficou-se pelos anos 70 ou ainda há vestígios nos dias de hoje?

Carolina Deslandes: Claro que a música de intervenção não tem o papel tão fulcral agora como tinha numa ditadura, não é? Completamente diferente, mas a “saia da Carolina” é música de intervenção, o “Eco” é uma música de intervenção. O projeto “Mulher” é um projeto de intervenção. Eu acho que qualquer canção que tu faças para intervir numa questão social, qualquer questão que tu faças que levante uma bandeira e que faça as pessoas sentarem-se à mesa a falar sobre o assunto que tu queres mudar é uma canção de intervenção. Acho que é muito mais do que um estilo de música ou do que cumprir regras estilísticas ou de escrita.

Bárbara Tinoco tinha o sonho de fazer uma banda sonora e Carolina Deslandes é muito fã de musicais. Por isso, juntou-se o útil ao agradável: 

Bárbara Tinoco: Fazer a banda sonora para o espetáculo foi em primeiro lugar muito divertido. Foi a primeira vez que nós fizemos as duas individualmente nunca tínhamos feito uma banda sonora foi muito intuitivo e rápido porque é mais fácil, eu acho, escrever para personagens, quando já sabes exatamente aquilo que queres escrever, tens uma ideia eu já sei o que é que eu quero falar nesta canção. Parece que a canção sai mais rápido porque isto não é sobre nós, é sobre personagens e portanto nós estamos a inventar os pensamentos delas, as ideias delas tudo delas. Quando somos nós é um bocadinho mais difícil porque tens de ir buscar ao fundo e portanto foi muito divertido.

Carolina Deslandes: Gosto pelos musicais – eu adoro musicais, eu adoro teatro desde pequena, adoro escrever desde pequena. Muito antes de gostar de fazer canções eu já gostava de escrever e era apaixonada pelo teatro. Sempre tive teatro na escola desde que me lembro de ser gente até o 12º ano. Por isso, é só somar duas coisas que eu gosto muito… que é três coisas, o teatro, a escrita e a música e por isso imagina é como tu gostares de chocolate, morango e bolacha e haver uma coisa que tem chocolate, morango e bolacha.

Fotografia de Marta Ricardo.

As músicas do espetáculo foram lançadas num álbum no dia 25 de abril. Foram convidados vários artistas: Buba Espinho, Diogo Branco, Filipe Melo, Jorge Palma, Lúisa Sobral, Paulo de Carvalho, Rita Rocha, Salvador Sobral, Sérgio Godinho, Tatanka e Tiago Nogueira. Podes ouvir este álbum abaixo: 

“O direito da liberdade vem com o dever da memória”

O espetáculo conseguiu chegar a todas as gerações, desde os mais novos, que vieram pela Bárbara Tinoco e pela Carlina Deslandes, como os seus pais e avós, como outros adultos sensíveis à história da revolução. Como nos disse Bárbara Tinoco, “os mais velhos se podem emocionar e os mais novos podem perceber importância de votar a importância de ter interesse nos assuntos políticos do país”. “A madrugada que eu esperava” ensinou-nos que “o direito da liberdade vem com o dever da memória”: é importante lembramo-nos do que aconteceu para poder usufruir em plenitude a liberdade que gozamos hoje em dia, e acima de tudo, lutar para que não a percamos novamente.

Fotografia de Marta Ricardo.

Escrito por: José Pereira, Marta Ricardo.

Editado por: Bianca Carvalho

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