O que acontece quando se coloca um músico de conservatório a dançar?

Embora a Dança e a Música sejam complementares, estas são, com frequência, colocadas separadamente. Surgem sempre como duas formas de expressão autónomas, como se duas realidades completamente distintas se tratassem. É como se estivéssemos a misturar água com azeite… quando na verdade, são como açúcar na água.

Anualmente, a ESTUFA – Plataforma Cultural permite a fusão do mundo da Dança e da Música através da Oficina Coreográfica: um espetáculo que une duas escolas de ensino artístico do concelho de Torres Vedras, no caso, a Escola de Dança Movimento com uma escola de música diferente de ano para ano.

A primeira edição da Oficina Coreográfica realizou-se em 2019 em conjunto com alunos de Música da Escola Luís António Maldonado Rodrigues no espetáculo “Desfrutemos O Delicado Instante Em Que Ela Muda De Vontade”. Na segunda edição, em 2022, surge “Pas De Quatre”, com a interpretação da Sociedade Filarmónica Ermegeirense.

“Pas De Quatre apresenta-nos quatro coreografias que percorrem quatro períodos da História da Música: o Medieval, o Barroco, o Romântico e o Contemporâneo.” (Fonte: ESTUFA- Plataforma Cultural).

Este ano não foi diferente e o convidado foi o Conservatório de Música da Física, em “Das raízes abertas como feridas”.

O objetivo deste projeto é cruzar sensibilidades e fazer com que bailarinos e músicos experimentem um novo contexto artístico. Os alunos do conservatório estão habituados ao ambiente sério, rígido, roupa formal, a estar muito quietos e direitos. O que será que acontece quando são colocados num ambiente completamente oposto, onde a regra é não estarem rígidos, nem quietos, nem de fato? Foram estas e outras coisas que tentámos saber junto de dois alunos do Conservatório de Música da Física, a Catarina e o Miguel, e duas alunas da Escola de Dança Movimento, Yara e Patrícia.

Em que consistiu a Oficina Coreográfica deste ano, o “Das raízes abertas como feridas”?

[Yara] O espetáculo deste ano passou por, como o próprio nome diz, irmos buscar as nossas raízes, as nossas bases, e tivemos a trabalhar muito isso no processo criativo.

[Patrícia] Fomos nós que fizemos o espetáculo, foi uma coisa muito nossa.

[Catarina] Na parte musical, nós tivemos de ir às raízes das notas longas, escalas cromáticas, ou seja, coisas muito básicas, ir mesmo ao fundo e com isso fazer coisas novas, inovar, fazer improvisação e tentar construir uma obra maior com o simples, o básico.

[Miguel] Nós tivemos uma base, demos a nossa interpretação do que é a raiz e de várias interpretações nossas nasceu uma interpretação conjunta. O objetivo não é ter uma história concreta, mas ter momentos que sejam relativos ao tema e à nossa maneira de pensar em relação ao tema. Por isso, não há uma história e quem não está habituado a este tipo de espetáculos fica “o que é que se esta a passar agora?”. É este mesmo o efeito que quisemos criar porque se a pessoa se prender à história vai ficar só na história e [isto] é uma maneira de as pessoas ficarem confusas e assim puxam por elas [próprias].

Os bailarinos da Escola de Dança Movimento (Fotografia de Hugo David).

O quão desafiante foi abraçar este desafio?

[Catarina] É desafiante para quem só teve a parte da música. Como eu já tive a parte da dança, felizmente, percebia o que estava a acontecer. Para os meus colegas que nunca deram um pezinho de dança eu acho que era muito entusiasmante, há imensa coisa a acontecer [no palco]. Nós, músicos, quando estamos no palco temos de estar quietos, no mesmo lugar, não está muita coisa a acontecer à nossa volta, estamos concentrados na música.

[Yara] Foi mais desafiante para os músicos trabalharem connosco do que nós trabalharmos com eles. Nós acabamos por, por exemplo, em laboratórios de dança que fazemos ou mesmo estudos coreográficos trabalhar em coisas mais performativas. Todos nós já trabalhámos várias vezes o som, a música, nós acabamos por não fazer só dança. Aqui na Estufa, em coisas mais performativas, fazemos coisas mais fora da caixa, então acredito que para nós foi um bocadinho mais fácil, mas não deixou de ser, de certa forma, desafiante.

[Catarina] Nós no conservatório estamos habituados a tocar peças que já existem e raramente existem estes tipos de workshops, então acho que foi bom para improvisarmos, sairmos fora da caixa e mostrarmos a nossa criatividade. Desta vez criámos a nossa própria música, da nossa cabeça, isto não existe em lado nenhum, e isso tem bastante valor.

Fotografia de Hugo David.

Como foi o processo criativo para a postura rígida dos alunos do conservatório?

[Catarina] Os colegas da dança escreveram em folhas as histórias de vidas deles e a partir daí tentou-se criar tanto as partes coreográficas como os murais.

[Miguel] Nós da música estamos habituados a chegar lá, ter as nossas coisas preparadas e apresentar, sentir a música na altura. Desta vez treinamos com o professor [coreógrafo e diretor artístico deste projeto, Ângelo Cid Neto] uma coisa diferente. Tínhamos vários exercícios onde tínhamos de sentir a música no nosso corpo. Confesso que, para mim, foi um bocado estranho no início, porque nós no conservatório temos de estar todos direitinhos, fazer as vénias, essas coisas todas. No início estávamos um bocado presos. Foi o desprender, tentar ver como sentimos a música no corpo, porque a música no conservatório é como se fosse matemática.

[Catarina] O que gostei mais foi quando nas primeiras aulas com dança em que o professor fez-nos soltar e andar pelo espaço, sentirmo-nos uns aos outros e andar mais rápido, mais devagar, movimentarmo-nos e sentirmos cada parte do nosso corpo, mexer cada dedinho, mexer a cabeça, as pernas, e sentir o espaço. E puseram-nos a cantar enquanto corríamos ou andávamos muito rápido.

No final do espetáculo, fomos convidados a um momento de interação com os artistas. A coordenadora do projeto, Magda Dias, perguntou-nos se todos podemos criar. A resposta, no meu ponto de vista, é um óbvio sim: no mundo onde vivemos, com tanta informação que entra, há que fazer sair o que for menos saudável. Porque não aproveitar essa necessidade de forma criativa?

Conclui-se, portanto, a grande importância de estimular a criatividade e sair da zona de conforto, tanto de forma geral, como, de forma particular, nos músicos em formação. Penso que as escolas de música poderiam criar mais oportunidades criativas para os seus alunos: aprender a parte teórica é importante, mas a criatividade não pode ser esquecida. A música não deveria ser só matemática, também deveria ser português, história, e tudo mais o que o artista quiser.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.

Escrito por: Marta Ricardo

Editado por: Joana Matos

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