O povo que lutou contra os eucaliptos e não vê a terra arder há 30 anos

A 31 de Março de 1989, cerca de 800 pessoas de Valpaços, assim como de Trás-os-Montes inteiros, Régua, Chaves, Vila Real e Mirandela, protagonizaram aquele que seria um dos mais marcantes episódios nacionais de união da população em defesa do ambiente e em contestação à sobreposição dos interesses económicos acima deste. Agindo também em nome da área rural e das suas potencialidades, colocaram em marcha ações de sensibilização, protesto e intervenção contra a plantação de eucaliptos, numa altura em que a eucaliptização em Portugal dava início. Enquanto em 1990 o eucalipto representava 4% da Área florestal (fonte: RTP), em 2019, já representava 26% da área florestal (fonte: ICNF).

A disseminação do eucalipto pelo país

Ao longo da década de 90, o governo de Cavaco Silva pretendia rentabilizar a floresta, promovendo em grande escala um regime de monocultura, com especial destaque para o eucalipto. Curioso referir que o então ministro da agricultura, Álvaro Barreto, acérrimo defensor da eucaliptização, fora presidente do conselho de administração da Soporcel (retornaria ao cargo pouco tempo depois do episódio). Esta empresa, sem consultar a população local, viria a substituir um vasto olival de Valpaços por eucaliptal, a partir de fundos perdidos do Estado, visando apenas o lucro fácil e negligenciando aquilo que é uma zona rural diversificada, rica e sustentável. Na altura, a teoria que vingou no debate político foi da propagação do eucalipto pelo país, mas já haviam vozes de advertência dos perigos adversos da sua plantação indiscriminada. No parlamento, o PCP, Os Verdes e o deputado socialista José Sócrates davam voz ao povo do Veiga do Lila.

O cabecilha do descontentamento

O grande artífice dos protestos foi António Morais, proprietário de vários hectares de olival no Lila. Assim que percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para substituir 200 hectares de oliveiras por eucaliptos na Quinta do Ermeiro, a maior propriedade agrícola da região, começou a disseminar as suas preocupações junto das personalidades mais influentes na aldeia: grandes proprietários, famílias reconhecidas e políticos da terra. Foi, desta forma, crucial na formação do espírito “anti-eucaliptal” dos valpacenses.

“Por um lado, numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi a riqueza deste povo. E depois havia os incêndios, que eram o diabo. São árvores altamente combustíveis e que atingem uma altura muito grande (…) Não queríamos deixar secar a nossa terra. E não queríamos arder aqui todos. Tínhamos de destruir aquele eucaliptal, custasse o que custasse”, diz António Morais.

A conquista do apoio da população

Para melhor chegar à população, um núcleo de agricultores organizava assembleias e dirigia-se a aldeias da região para, depois da missa, informar a população dos riscos do negócio do eucalipto. Iam, ainda, de casa em casa esclarecer as pessoas. No entanto, numa fase inicial notava-se alguma renitência. A madeira, a curto prazo, valeria sempre mais do que a azeitona, e a castanha ainda não rendia aquilo que rende hoje. Ainda assim, a população conseguiu perceber que, a longo prazo, o eucalipto só lhes traria malefícios. Por ser uma cultura que consome bastante água, os solos secariam. Aliado ao seu elevado consumo de nutrientes, levaria a que as culturas autóctones, à volta das quais se dinamiza a economia local (na produção de azeite, vinho, cortiça, na caça e pesca, etc.), ficassem impedidas de se desenvolver.

«Então se tínhamos o melhor azeite do país íamos dar cabo dele para enriquecer uns ricalhaços de fora?», argumenta João de Sousa, o então presidente da junta do Veiga do Lila que, apesar de não ter podido apoiar a população oficialmente, comunicava às pessoas aquilo que haviam de fazer.

Mas aquilo que o povo mais temia era a capacidade inflamatória do eucalipto. Por essa mesma razão já não apelidavam a árvore pelo nome, mas por “fósforos”. Estava assim conseguido o suporte da população.

A Revolução Do Ermeiro

Duas semanas antes da intervenção mais intensificada, duas centenas de pessoas de várias das aldeias conseguiram arrancar 50 hectares de eucaliptal. Em resposta, os donos da empresa chamaram a GNR, que nada pode fazer pois o povo fugiu. Esse ataque chegou à redação do Jornal de Notícias e trouxe à terra vários jornalistas, tendo até um helicóptero coberto os acontecimentos. Foi aí que António Morais percebeu a dimensão do que se estava a passar, tendo solicitado o suporte da Quercus.

Contudo, esta ONG viria a demarcar-se dos protestos, restado apenas o apoio do seu núcleo do Porto e de Bragança. Foi também nessa altura que do Parlamento ecoaram as vozes de solidariedade para com o povo do Lila. Chegou então o 31 de março de 1989, dia em que oito centenas de pessoas se juntaram no Lila para retirar qualquer eucalipto que restasse. O povo gritava “oliveiras sim, eucaliptos não”. Enquanto isso, os agentes da GNR avançavam violentamente e disparavam tiros para o ar. Durante apenas uma hora, 180 hectares de pequenas árvores, que haviam sido plantados há pouco tempo, foram arrancados à mão.

A presença policial durante a intervenção na Quinta do Ermeiro  (fonte: Notícias Magazine e Quercus)

“Naquele dia ninguém sentia medo. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar”- Maria João Sousa, que tinha 15 anos quando participou da Revolução do Leila

A reação da força policial demonstrou-se incapaz de parar a vontade do povo. Duas centenas de agentes foram insuficientes para travá-la. Alguns “gozavam” até mesmo com as autoridades, sendo alvo “de bastonadas das boas”, como refere Natália Esteves, descendente de uma família de produtores de azeite. Enquanto isso, agentes das proximidades da aldeia diziam ao povo: “Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos”.

A “colheita dos frutos” de uma luta feita de percalços

Apesar de nem tudo ter corrido como a população gostaria, ninguém envolvido nos protestos se arrepende das suas ações. Mesmo tendo enfrentado intimidação, violência policial e até detenções (por posse de arma ilegal e invasão de propriedade privada), hoje, relembram orgulhosamente a sua revolta. Desde então que são raros os incêndios na região de Valpaços, em contraste com o restante interior do país, onde os massivos incêndios são quase anuais. A população do Leila hoje lamenta e está solidária para com as populações que sofrem com os incêndios que sucessivamente assolam o país e têm a certeza que se não tivessem lutado na altura, estariam condenados ao mesmo destino.

Cândida Monteiro, José Almeida e Delfina Cardoso, recordam com orgulho a batalha do Leila (fonte: Rádio Ansiães)

Ações como esta mostram que a luta por um ambiente sustentável não está condenada. Nós, individualmente, podemos ter um papel significativo no prosseguimento da causa ambiental. Muitas vezes as pessoas caem no niilismo de achar que as suas ações individuais não podem fazer a diferença face a um sistema em que, muitas vezes, interesses económicos difíceis de derrubar são uma prioridades.

Escrito por: Francisco Santos

Editado por: João Fonseca

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