Cristina Rodrigues, deputada não inscrita, apresentou à Assembleia da República vários projetos-lei, propondo alterações ao Código do Trabalho, com o objetivo de garantir aos trabalhadores faltas sem perda de vencimento em caso de morte, ou doença, dos seus animais de companhia. Passariam a ter assegurado um dia para luto e um máximo de sete dias, por ano, para “prestar assistência inadiável e imprescindível, em caso de doença ou acidente”.
Para justificar a relevância das mudanças propostas, a ex-deputada do PAN, apoia-se em estudos que confirmam a evolução do papel dos animais de estimação na sociedade, afirmando estarem cada vez mais próximos das pessoas. Entre outros, é citado um estudo da GfK, que demonstra a integração de animais de companhia em mais de metade das famílias portuguesas, reconhecendo o seu contributo para o bem-estar físico e psicológico. É também citada uma dissertação de mestrado, que evidencia o papel que os animais desempenham aos olhos dos seus detentores, identificando “o animal com um amigo e companheiro e, inclusive, como um filho”, como afirmado no projeto-lei. Menciona-se ainda o Acórdão da Relação do Porto, de 19/02/2015, relativo ao reconhecimento do valor inerente aos animais de companhia e à sua necessidade de tutela jurídica, bem como um estudo por Wrobel e Dye, de 2003, onde é exposto que “85% das pessoas relatam sintomas de luto na morte de um animal de estimação e mais de um terço têm um luto contínuo aos seis meses”. A legislação portuguesa reconhece animais, não humanos, como seres sencientes, protegendo a sua necessidade de atenção e cuidados médicos, negligência dos quais, devem resultar punições e condenações. Bastam, creio, interações quotidianas com os bichos para que nos seja possível alcançar a sua capacidade de sentir e comunicar, bem como o seu talento orgânico para criar laços.
Referindo a Lei o auxílio médico a animais que dele necessitem, nomeadamente por parte dos seus tutores, é lógico que se criem condições para que as pessoas possam, efetivamente, prestar tais cuidados. As medidas propostas apoiam-se no argumento de que a Lei e as condições existentes não são compatíveis, e que é papel do Estado legislar por forma a criar as conjunturas necessárias, não só para que tal seja corrigido, mas sobretudo para que possam ser garantidos os direitos ao luto e a prestar cuidados dos cidadãos trabalhadores.
As propostas apresentadas são simplesmente coerentes com aquilo que é, efetivamente, a vivência de tanta gente. Tive esperança, ao deparar-me com os projetos-lei, que qualquer problemática associada à sua apresentação, e possível aplicação, estaria longe de apontar os vínculos emocionais e psicológicos que com os animais criamos enquanto fenómeno negativo. Enganei-me. As opiniões alheias contam com a ideia de que a crescente inclusão dos animais de companhia nos círculos importantes das pessoas é reflexo de uma sociedade que não respeita ou valoriza a presença e companheirismo humano; que deve repensar as suas noções e prioridades, e que, acima de tudo, sugere fragilidade e exagero. A habitual perspetiva de que isto é tudo gente que não quer trabalhar parece ser igualmente recorrente.
Não é que a presença ativa de animais na vida de alguém iniba o valor das suas pessoas. Bem feitas as coisas, o que se pretende é que esse valor passe a ser produto de um processo mais seletivo, guiado por uma melhor compreensão das noções de amor e respeito, favorecidas justamente pela influência dos animais no nosso dia-a-dia. Na verdade, há milénios que cães e gatos são vistos como animais de companhia, desempenhando este papel não só pela sua utilidade prática, mas emocional também, provada, por exemplo, pela descoberta de campas pré-históricas, com restos mortais de humanos e não humanos lado a lado.
Uma vez que, enquanto sociedade, aceitamos e praticamos o ritual do luto por aqueles que amamos, que sentido teria restringir a prática apenas a seres humanos? A justificação mais recorrente parece prender-se com uma hierarquia das espécies, que guia as crenças e preconceitos sociais: bichos humanos no topo, bichos não humanos por baixo – cães e gatos não tão em baixo, mas por baixo, ainda assim. A hierarquia, por sua vez, é justificada pela inteligência superior do ser humano; pelo seu entendimento, capacidade de criar, de organizar, de estudar. Sabemos hoje que muitos animais provam ter capacidades cognitivas equivalentes a crianças humanas de 2, 3, 4 anos. Contudo, na realidade, nunca a inteligência foi critério para validar o valor da existência de um ser; fosse esse o caso e projetos lei como estes não seriam tópico de questionamento no que toca à sua legitimidade ética, já que faltaria quem falhasse em compreender a sua relevância.
Recentemente, fui relembrada do quão incapacitante pode ser a perda. A perda enquanto morte; enquanto saudade; enquanto memento incontornável do passado, na forma de um gato amarelo e branco com muita falta de paciência, por quem teria falhado com qualquer compromisso que me impedisse de o tratar. Também eles merecem ser protegidos. E merecemos nós ser protegidos, por tudo o que lhes devemos.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Mariana Melo
Editado por: Guilherme Freitas