Isaiah Berlin, fã incondicional de Alexander Herzen, foi um dos filósofos e historiadores das ideias mais relevantes do século XX, tornando-se um destaque devido ao seu contributo para a teoria do pluralismo e devido à sua teoria dos dois conceitos de liberdade. Desta forma, ao longo da sua vida, contribuiu com conteúdo académico direcionado ao liberalismo, trazendo uma nova visão autoral. Durante a realização deste artigo, tive foco principalmente nos acontecimentos e aspetos mais relevantes da vida e do pensamento de Isaiah Berlin, de modo a poder melhor entender como viveu, o contexto histórico e o porquê do foco da sua obra.
Os seus primeiros anos de vida e a sua educação
Isaiah Berlin, nasceu no dia 6 de junho de 1909 em Riga, capital da Letónia, na altura ainda território pertencente ao Império Russo. Filho único, porém, não foi a primeira tentativa dos seus pais de terem filhos, houve um parto anterior, todavia a irmã mais velha de Berlin foi um nado-morto. Avisada que futuras gravidezes podiam ter um risco de vida associado, Marie, mãe do autor, decidiu mesmo assim voltar a tentar e foi assim que dentre inúmeras complicações na sua segunda gravidez, deu à luz Isaiah, o qual nasceu com o seu braço esquerdo permanentemente incapacitado devido a um procedimento utilizado durante o seu parto.
Os seus pais eram judeus seculares abastados, o seu pai Mendel Borisovitch Berlin (1884-1953) foi um comerciante bem sucedido dentro da indústria madeireira que tinha como principal negócio o fornecimento de madeira para a construção de carris e linhas férreas durante a expansão da rede ferroviária russa. O nome da sua mãe era Marie Volshonok. Falavam alemão e russo, desde cedo o gosto pela literatura e música influenciou o seu filho, havendo testemunhos de que Isaiah, devido a esta influência, acabou por despertar um grande talento para a música. No seu núcleo familiar mais próximo não eram religiosos devotos, ao contrário da família mais distante, o que também acabou por influenciar o pensamento do autor durante a sua vida.
O autor e a sua família mudaram-se, a primeira vez, de Riga para a cidade de Andreapol para conseguirem fugir do avanço do exército alemão em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, sobre o Império Russo. Um ano mais tarde, pela segunda vez, em 1916, a família muda-se, agora para Petrogrado (cidade que tinha como nome São Petersburgo, porém o nome foi alterado em 1914 com o início da guerra, mais tarde muda outra vez de nome para Estalinegrado, e só com o colapso da União Soviética é que retorna ao seu nome original). Foi em Petrogrado que Isaiah teve contacto em primeira mão com a brutalidade e violência inerentes à Revolução Russa de 1917. Segundo o mesmo, o episódio que mais o marcou, e acabou por moldar muito do seu pensamento futuro como autor, foi ter presenciado um polícia a ser perseguido por uma multidão em plena rua e mais tarde arrastado possivelmente para a sua morte. Futuramente, refere-se a este episódio brutal, violento e condenável, como o despoletar da sua preocupação para com o tema da censura e violência política. O antissemitismo que já era herança da Rússia czarista não se fazia esconder durante a revolução, mesmo que agora não fosse uma bandeira oficial do regime. Consequentemente, e para evitar outros tipos de repressão por parte do regime, os Berlin decidiram fugir do que viria a ser a União Soviética. Em primeira instância aproveitaram o Tratado de Riga de 1920, que encerrava a guerra entre a Letónia e a Rússia Soviética, para poderem regressar a Riga e de lá partir para a Grã-Bretanha, em 1921, na procura por paz e conforto, a escolha deu-se devido ao facto de Mendel Berlin já possuir algumas ligações comerciais e ter património em Inglaterra. A família conseguiu-se naturalizar em 1929.

Foto de Isaiah Berlin. Fonte: https://www.americanacademy.de
Do aprender a língua inglesa até se tornar um académico respeitado
Isaiah Berlin aos onze anos teve de aprender inglês do zero e ao mesmo tempo tentar acompanhar os outros alunos, o que ele conseguiu fazer notavelmente a um bom ritmo. Estudou na St Paul’s School e em 1928 conseguiu uma bolsa de estudos para a Corpus Christi College, em Oxford, para o que seria hoje o curso de Estudos Clássicos. Lá foi reconhecido, mesmo ainda sendo um estudante, como alguém com um grande talento para o debate e como um notável orador. Em 1932 foi eleito para uma fellowship na All Souls College, tal acontecimento teve bastante destaque dentro do mundo académico da época, sendo Isaiah o primeiro judeu a conseguir tal distinção em mais de quinhentos anos de história da faculdade na altura. Conseguiu manter a sua fellowship em All Souls, até 1938, ao mesmo que também tinha uma lecturership na New College. E foi nesta última faculdade, que a partir de 1938 e até ao ano de 1950, possuiu o cargo de fellow na área de filosofia, porém, devido ao seu serviço durante Segunda Guerra Mundial, esteve alguns anos ausente dos seus serviços como investigador e professor.
Em All Souls, no ano de 1933 foi encomendado por Fisher e Gilbert Murray a Berlin um ensaio sobre a vida e pensamento de Karl Marx (1818-1883). Tal ensaio só veio a ser publicado no ano de 1939 e até hoje é um dos grandes destaques da sua carreira, porque foi talvez o primeiro autor de língua inglesa que conseguiu analisar, compreender e escrever acerca de Marx de um ponto de vista mais objetivo e académico, assim destacando – mesmo sendo critico de tais ideias – a importância e o poder de toda a sua teoria e história.
Por volta do ano de 1935, pode-se dizer que Berlin estava dividido em dois. Empregando maior parte do seu tempo para ler e analisar Marx durante o processo de escrever o ensaio sobre o autor, e ao mesmo tempo durante esse processo começou a ler enciclopedistas franceses e autores alemães, assim adquirindo bastante apreço pelas teorias dos mesmos que têm como ponto de partida, em sua maioria, meados do séc. XVIII. Acabou assim por se interessar bastante pelo Iluminismo, e descobrir quem viria a ser o seu autor de destaque para o resto da sua vida, Alexander Herzen (1812-1870). Herzen, foi um dos grandes autores russos do seu tempo, o seu pensamento influenciou várias gerações futuras e autores, ficou conhecido como: “O pai do socialismo Russo”. No seu leque de ideias e estudos, socialismo e populismo estão no centro da sua escrita, além de que também é recordado pelo forte criticismo perante a corrupção governamental, violência e persuasão política, sendo ele um grande defensor dos direitos individuais do homem.
A Segunda Guerra Mundial
Com o despoletar da Segunda Guerra Mundial, Berlin não podia participar do serviço militar tradicional devido à sua incapacidade no braço esquerdo, porém, ele tinha um grande desejo de ajudar, principalmente no contexto soviético e ir para Moscovo. Devido aos seus conhecimentos e a falar russo fluentemente, acabou por fazer parte da equipa da Embaixada britânica, nos EUA, trabalhando desta forma para o Ministério da Informação. Posição que assumiu até ao final da guerra, após ter regressado de Inglaterra para os EUA em janeiro de 1941. Durante o tempo passado nos EUA, o autor, além de trabalhar na área da informação, também acabou por fazer várias amizades para a vida. Berlin foi convidado em várias ocasiões para ocupar cargos políticos e diplomáticos, devido à sua experiência, porém, acabou por negar quase todos. Num dos últimos trabalhos, mesmo que tardiamente e já no pós-guerra, o autor pôde realizar o seu desejo de ir para Moscovo entre os anos de 1945 e 1946, ao serviço da Grã-Bretanha, no entanto não foi a experiência pela qual o autor esperava e acabou por querer regressar a casa.

Isaiah Berlin. Fonte: https://www.timeshighereducation.com/
O pós-guerra e a restante da sua vida
Berlin acaba por publicar o seu primeiro livro, em 1946, uma tradução de uma obra autobiográfica de Turgenev, que era um autor russo. Com o final da guerra, Isaiah, tomou várias decisões que viriam a marcar a sua vida. As duas mais importantes foram sem dúvida, a sua mudança de carreira e a decisão de voltar para a Inglaterra, mais especificamente para Oxford, após quatro anos nos EUA. O próprio afirma que, morar nos EUA, foi uma experiência fascinante e uma excelente oportunidade para conhecer grandes figuras da história. Quanto à sua mudança de carreira, o autor decidiu mudar de campo de estudos e investigação de forma gradual – trocando Filosofia por História das Ideias – esta decisão acabou por se tornar controversa na época em Oxford, tendo em conta que a sua nova área de eleição não era prioritária na visão da academia. Levando a que se sentisse isolado intelectualmente, porém de qualquer forma, começou a contribuir para esta área que na visão dele era negligenciada na Inglaterra. Foi só em 1950 que abandonou o seu posto como professor em New College e decidiu voltar para All Souls para levar a cabo as suas investigações. O primeiro e principal marco desta mudança teve lugar em 1953, quando ele publica um dos seus famosos ensaios: “O Ouriço e a Raposa”, onde aborda o pluralismo e analisa profundamente a filosofia de Liev Tolstói (1828-1910).
Em 1956, casou com Aline Halban, e até essa altura o autor ainda morava em All Souls; no ano seguinte, é eleito para a Chichele professorship na área de Teoria Social e Política. Já em 1966, Berlin, foi eleito para presidente da então Iffley College, que futuramente daria pelo nome de Wolfson College após adotar o nome uma das fundações e financiadoras da faculdade ,Sir Isaac Wolfson’s Foundation, que compartilhava o lugar de doadora com a Ford Foundation. Isaiah reformou-se do posto de presidente de Wolfson no ano de 1975.
Pelo resto da sua carreira e vida, Isaiah Berlin, dedicou-se à investigação da história das ideias, da teoria política, entre outras áreas similares. Em 1969 publica “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”, onde compila alguns dos seus ensaios, acabou por ser uma das obras pela qual é reconhecido, tendo em conta que no interior desta obra encontra-se o seu ensaio “Os dois conceitos de liberdade” de 1958, considerado um dos mais relevantes da sua carreira, onde dedica o seu tempo a discorrer acerca dos conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva. Mesmo que durante a sua carreira tenha sido imensamente reconhecido, só após a sua morte a 5 de novembro de 1997, em Oxford, é que teve ainda mais destaque perante a academia e sociedade britânica como um grande autor, com um contributo imenso para a História das Ideias, onde se pode destacar as suas teorias quanto ao pluralismo de valores e os dois conceitos de liberdade.
Pensamento e filosofia política do autor
O liberalismo na visão de Berlin
Isaiah Berlin foi um ávido critico do liberalismo, mesmo que suas crenças se pautassem por ideias liberais, não concordava com a universalidade e hierarquia de valores que existia principalmente dentro de uma visão mais clássica ou até mais perfecionista do liberalismo, em que a liberdade é o valor mais relevante comparativamente aos outros. A sua critica tem como alvo principal os defensores do liberalismo perfecionista, principalmente Joseph Raz. Berlin afirma que seria uma visão utópica que não seria passível de ser aplicada totalmente na realidade, tendo em conta que a maioria dos valores em uma visão perfecionista não são compatíveis uns com os outros, como por exemplo, a liberdade com a igualdade; se existisse liberdade total, os mais fortes iriam subjugar os mais fracos e não iria existir igualdade.
É passível de se dizer que grande parte das vezes os valores da vida são incompatíveis e entram em conflito entre si, sendo impossível a realização desses valores de forma harmoniosa e perfeita. Neste momento já podemos ver as bases para o pluralismo de valores defendido por Berlin. O liberalismo de Berlin tem um cunho conflituoso na sua génese, considerando a multiplicidade de valores, em que numa primeira instância não são totalmente compatíveis, o ser humano terá de encontrar um equilíbrio entre estes valores constantemente.
Pluralismo de valores
O pluralismo de valores foi uma das principais teorias do pensamento de Berlin, inspirado por Vico e Karl Marx, destacando a defesa destes autores acerca da mutabilidade que é inerente à natureza humana. O desenvolvimento do seu pensamento acerca desta teoria teve um início “negativo”, o autor começou por identificar primeiramente o oposto do pluralismo, ou seja, o monismo, do qual é amplamente critico.
Para Berlin, o pluralismo de valores, de uma forma sucinta, caracteriza-se pela multiplicidade de liberdade de escolha e a compreensão dos modos de vida, cultura e valores que são diferentes dos nossos. Mesmo que os valores apresentados e defendidos por uma cultura não sejam desejados ou compatíveis, ou colocados como relevantes, por outra cultura, tem de existir um ponto de tolerância. Isto leva ao autor a defender nesta teoria que cada escolha implica uma perda, pois o ser humano não pode ser dotado de obter tudo o que deseja ou ambiciona. No entanto, é possível que se chegue a um acordo, um equilíbrio, a partir a definição de prioridades, estas nunca sendo absolutas ou finais, possivelmente chegarão para evitar um conflito devido a escolhas intolerantes. Este equilíbrio, segundo o autor seria o primeiro paço para se manter e alcançar uma sociedade decente . Neste contexto pode-se dizer que Berlin não acredita numa natureza humana determinada e estática, acabando por estabelecer logo as bases para a sua teoria sobre o pluralismo, a multiplicidade de interesses e valores que é inerente ao ser humano .
Qual a relação do pluralismo de valores com o liberalismo, segundo Berlin? A principal ligação é que a duas teorias centralizam-se no poder e liberdade de escolha dos seres humanos. O autor acaba por justificar isto criticando os monistas que, através da sua teoria, tornam possível a justificação de, por exemplo, regimes autoritários. O pluralismo tem uma vertente mais liberal, apenas pelo pequeno facto de que um ser humano terá liberdade de acreditar que existe mais do que uma resposta “certa” para um problema, assim abrindo um caminho para a liberdade e para a tolerância. Para o autor este facto representa uma ponte entre o liberalismo e o pluralismo. Para o autor não existe uma ligação lógica entre o liberalismo e o pluralismo, porém ao contrário já existe, entre o pluralismo e o liberalismo. Isto devido à possibilidade de existir um liberalismo despótico, assim para Berlin é possível ser-se liberal sem se ser pluralista. Porém, para se ser pluralista é necessário que exista tolerância e liberdade de capacidade escolha.
Liberdade positiva e negativa
Esta teoria revelou-se um dos trabalhos mais relevantes da vida de Isaiah Berlin. Estes dois conceitos de liberdade foram introduzidos pelo autor no seu ensaio “Os dois conceitos de liberdade” de 1958. A liberdade negativa e a positiva são as duas abordagens/interpretações mais importantes, segundo Berlin, acerca da liberdade. Mesmo que a esta teoria tenha sido de extrema importância no campo de atuação do autor, a história das ideias e da filosofia política, há que considerar que esta ideia não foi desenvolvida e explorada ao seu máximo. A escolha de nomes para estes dois conceitos foi devido à sua oposição, isto porque, representam respostas e questões diferentes que não devem ser confundidas entre si.
Segundo Berlin, a liberdade negativa consiste e pauta-se pela ausência de interferência ou submissão perante o exterior ou terceiros na liberdade do indivíduo, portanto este tipo de liberdade tem uma conotação e conceito negativo, considerando que o indivíduo vai desejar a ausência de atividades e relações humanas que possam obstruir as suas. Este conceito não só está ligado a uma realidade física, mas também abstrata, Berlin define que a liberdade negativa também tem como foco o espaço que terceiros dão à liberdade dos outros. Sendo que este tipo de liberdade se foca maioritariamente numa esfera exterior ao indivíduo, e como ele interage com outros, acaba por fornecer uma melhor defesa contra perigos exteriores e controlo/coação físico por parte de terceiros. Segundo Cartar, este tipo de liberdade define-se pela possibilidade de o indivíduo desenvolver e alcançar os seus objetivos desde que não entre na esfera de liberdade de outros, e assim da mesma forma, que ninguém entre na dele, desta forma todos seriam livres de realizar todos os seus desejos e objetivos livremente.
Ao contrário da liberdade negativa, a liberdade positiva foca-se principalmente numa esfera interior do indivíduo e não exterior. O conceito deriva do desejo do indivíduo querer ser “dono” de si próprio e querer ter liberdade interna, assim tomando decisões com base em propósitos e objetivos racionais. Para o autor, podem existir fatores internos que podem impedir e obstruir a obtenção desta liberdade, como por exemplo, obsessões e medos. Deste modo, um indivíduo pode ser negativamente livre, porém não o ser positivamente, por exemplo, estando recluso em uma prisão. A liberdade positiva tem a ver principalmente com a existência de um autocontrolo e de um determinismo interior.
Escrito por: Felipe Pereira
Editado por: Alexandre Guerreiro