Os sons de Abril, que há 47 anos pairavam discretamente entre frequências e que davam o alerta tímido que viria a dar início à Revolução dos Cravos, percorreram hoje, depois de um ano em silêncio e com toda a intensidade, a Avenida da Liberdade.

As vozes de Zeca Afonso, Fausto, Sérgio Godinho, José Mário Branco, entre outros, alegraram e marcaram o passo daqueles que caminharam ao longo da Avenida. As faixas viam-se esticadas, os posters nas mãos e os cravos coloriam as roupas, cabelos, malas e até coleiras dos amigos de quatro patas.
Fotografia: Mariana Mateus
A multidão, frequentemente relembrada da importância do distanciamento social, trazia nas faces cobertas a metade a satisfação de marchar outra vez com os seus pares, numa celebração pela liberdade. Aqueles que em cima dos tanques da Associação 25 de abril exibiam o verde-tropa das fardas, faziam-se acompanhar de uma arma que protege do vírus e que faz agora parte do uniforme dos revolucionários contemporâneos: a máscara.
Fotografia: Mariana Mateus
Numa altura em que muitos esquecem os horrores da repressão e constrangimentos que ditavam a vida dos portugueses durante o Estado Novo, sai-se à rua com gritos de esperança, mas com um tom de advertência. Não esqueçamos o passado. A lição é repetida como se de uma aula de História se tratasse: o passado tende a ser cíclico, mas o ciclo pode e deve ser quebrado.
Serve este dia e esta celebração para demonstrar que Portugal continua a ser sinónimo de liberdade. Comparar o período de contenção e cautela que estamos a viver devido à pandemia da Covid-19, à ditadura salazarista, é um exercício descabido e que traduz egoísmo e falta de consideração. Falta de consideração não só por aqueles que perderam a vida e sofreram com as consequências de um vírus invisível e ao qual não se consegue impor um golpe de Estado, mas também por aqueles que presenciaram a mais longa ditadura da história moderna da Europa Ocidental.
Rapidamente os autores destas comparações ineptas se esquecem de que, se sofressem eles os horrores da repressão e da ditadura de que se dizem reféns, não teriam nem o espaço nem o direito de divulgar tais convicções. As suas opiniões seriam não julgadas pela plateia virtual (ou presencial) à qual destinam os seus desabafos, mas censuradas pelo lápis azul que durante longos e árduos anos riscou a liberdade.
Mas o azul se fez vermelho e a coragem chegou com abril, coragem de lutar por um bem que tem de continuar a ser defendido. Tal como expressou José Carlos Ary dos Santos:
E se esse poder um dia o quiser roubar alguém não fica na burguesia volta à barriga da mãe. Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu. Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados. Escrito por: Mariana Mateus Fotografia de: Mariana Mateus Editado por: Rafaela Boita