Ver, compreender, aceitar: Entrevista a uma docente do ensino superior

Fonte: Google imagens

Nasceu em Cabo Verde, mas veio para Portugal quando ainda era muito nova, desconhecendo uma realidade diferente da sua terra natal. Para uma criança, as cores são algo que não existe.

Desde cedo que recebeu comentários ofensivos de outras pessoas, sem compreender o seu porquê. Estes comentários deviam-se à cor da sua pele, sendo que nessa altura, poucos eram os africanos que procuravam chamar a Portugal a sua nova casa. Foi aqui que conheceu pela primeira vez o conceito de racismo.

Assim, disponibilizou-se para dar o seu testemunho ao HeforShe ISCSP, de forma a partilhar a sua experiência.

Pode-me contar um pouco do seu percurso?

“Comecei a dar aulas em 2000, mas o meu percurso começou muito antes disso. (…) Já agora, fiz a licenciatura em Gestão e Administração Pública na vertente de Gestão de Recursos Humanos, depois fiz o mestrado em Sociologia e o Doutoramento em Ciências Sociais, na especialidade de Sociologia. Nos últimos dois anos de licenciatura já era jornalista de rádio, e era algo que gostava muito, mas que me ocupava muito tempo. Depois disto fui trabalhar para a reitoria da Universidade Técnica, como coordenadora do programa de Erasmus, onde trabalhei com um Pró-reitor que era docente na universidade onde trabalho atualmente. A certa altura, ele convidou-me para dar aulas na Universidade Internacional, e depois acabei por ser admitida onde trabalho atualmente, sendo que ser professora não foi algo que escolhi, mas uma oportunidade que aproveitei. Antes disto já tinha sido docente do 5º e 6º ano. Foram dois anos, tendo sido uma experiência interessante pois a primeira escola estava numa zona de grande vulnerabilidade socioeconómica, tendo crianças que vinham de contextos familiares terríveis. Era uma escola pré-fabricada com 17 anos com poucas condições, onde dei aulas a uma turma só de repetentes.”

Foi aqui que foi mencionado algo bastante interessante, como o ambiente que nos rodeia nos influencia mesmo sem notarmos. Para os alunos que faziam parte destas turmas de repetentes, sentiam-se desmotivados, discriminados, ajudando à criação e alimentação de um estigma, que afetará estes alunos no futuro, pois sempre irão sentir que esperam o pior deles, e sentem a necessidade de provar isso mesmo à sociedade.

“Os alunos sentem que ganham um troféu que diz a toda a gente que eles são os maus, que são os piores dali e não conseguem livrar-se deste rótulo”

Vi que é uma investigadora no CIEG, que tipo de trabalho faz lá?

“O CIEG funciona como qualquer outro centro de investigação. Eu sou uma investigadora integrada, ou seja, posso fazer investigação com o apoio do CIEG ou posso integrar projetos de investigação que fazem parte do CIEG, ou eu própria posso submeter projetos coordenados por mim, com o apoio do CIEG”.

O CIEG dá também apoios para os seus investigadores participarem em conferências nacionais e internacionais, através das verbas que recebe dos projetos e candidaturas feitas para ter verbas próprias.

Quais foram os seus maiores obstáculos no mundo académico como mulher negra?

A entrevistada considera-se uma pessoa privilegiada, dizendo que “Não posso apontar obstáculos por ser uma mulher negra, apesar de saber que há casos em que as pessoas tiveram dificuldades e foram até travadas”.

O meio académico, atualmente, tem uma taxa de feminização elevada, mas nem sempre foi assim, dizendo mesmo que “Quando fiz a minha licenciatura tive fundamentalmente professores homens e brancos”.

Apesar da alta taxa de feminização, o meio académico continua a ser dominado por homens, especialmente no ensino superior. “O facto de ser mulher, acredito que tenha ajudado a travar um pouco mais o meu trajeto. Não em coisas muito explícitas, mas as mulheres têm de batalhar para terem determinadas funções, pois as que normalmente lhes são atribuídas são funções mais subordinadas”.

É um facto que existem muitas tarefas que não são atribuídas aos homens, mas que se atribuem às mulheres, sendo isto o resultado de uma sociedade masculinizada. Não que seja a sociedade em que vivemos atualmente, mas ficam sempre “restos” deste tipo de sociedade, e, por vezes, temos todos comportamentos machistas sem notarmos.

Isto são comportamentos enraizados na nossa cultura, existindo também vários comentários resultantes da representação social da mulher, comentários e comportamentos que estamos habituados a ver e a ouvir e que não associamos à discriminação e subordinação da mulher, mas que, na verdade, existem.

“Um exemplo parvo disto é a elaboração de uma Ata, mais rapidamente se pede a uma mulher para fazê-la do que a um homem, parte-se do pressuposto que uma mulher está mais disponível para estas tarefas do que um homem”.

Como sente que sendo docente poderá ajudar as pessoas a tornarem-se antirracistas?

“É algo que passa pela educação de alguém, não só na escola como em casa. O racismo está relacionado com o medo do outro, sobretudo com o desconhecimento face ao outro, assim como o receio que o outro venha ocupar o meu lugar de destaque”.

É um facto que ao longo da história se tentou mostrar que existem raças inferiores e raças superiores. Sobre raças, diz que “Não podemos falar em raças porque a conjugação dos genes é muito diferenciada dentro de indivíduos que têm características físicas exteriores semelhantes, ou seja, se fizer uma comparação entre os genes de pessoas que têm a mesma tez, a multiplicidade de genes é tão variada que não poderá dizer que aquelas pessoas, apesar de terem traços semelhantes fisicamente, pertencem à raça x ou y”.

Ao existirem diferentes culturas e costumes é que se criou o conceito de “raça”, e o racismo vem quando um indivíduo não compreende estas diferenças culturais e as rejeita. Existem padrões e normas na sociedade, como uma pequena caixa, e todos os que não conseguem caber nela, são discriminados. Há uma necessidade de aceitação e compreensão que nós, como sociedade, desde o início dos tempos pusemos de lado. Apesar de agora existir uma maior aceitação, o nível de compreensão ainda não está ao mesmo nível do de aceitação.

“Em Portugal, várias minorias éticas têm diversos problemas a nível socioeconómico, gerando-se determinados tipos de comportamentos, relacionados com delinquência. Isto acontece porque as pessoas, nestas situações, não conseguem ver para além do seu contexto atual, sentindo-se frustradas.”

A questão dos bairros sociais foi falada, sendo um exemplo da necessidade de “despejar” as minorias num sítio só, e como os estereótipos dos bairros sociais afetam as pessoas que neles habitam. Ao colocar estas pessoas vulneráveis a nível socioeconómico, e com diferentes culturas num só sítio, é normal que surjam conflitos. Para além disto, como estas pessoas são afetadas pelo ambiente que as rodeia, se uma se vira para a violência e delinquência, e se, para quem ali vive, esta é a única realidade que conhecem, é normal que se virem também para esse lado.

É como se a questão das turmas dos repetentes voltasse, onde todas estas pessoas vulneráveis são colocadas num único local, enquanto a sociedade lhes diz que eles não fazem parte, o que faz com que se sintam desmotivados, acabando por afetar o futuro destas pessoas e a maneira como se veem.

Quanto às matérias lecionadas na escola, diz o seguinte: “Não me sentia representada. Sendo Portugal um país multicultural, (na escola) não existia qualquer referência a África, e a comunidade migrante em Portugal era sobretudo Africana. “

“Deve-se sobretudo falar da forma correta, deve haver equilíbrio entre os povos e não haver minorias contra maiorias e vice-versa.” Quanto a isto, mencionou o facto das minorias se sentirem esmagadas constantemente pelas maiorias, mas que a melhor maneira para combater isto é a formação e educação de todos.

O racismo é algo obrigatoriamente abordado nas famílias negras, mas o mesmo não acontece nas famílias brancas, isto deve-se ao facto destas não o viverem na pele, o que leva muitos a acreditar que não existe sequer racismo em Portugal. É necessário abordar estes temas em casa, independentemente da nossa cultura ou cor de pele.

“Eu quando entrei para a escola, pós 25 de Abril, ainda antes da independência de Cabo Verde, no meu quotidiano ouvia constantemente “Oh preta” e “Volta para a tua terra”. Não havia outras crianças de origem Africana na escola, o que tornava estes comportamentos normais”. Isto dito relativamente às crianças não terem contacto desde novas com outras pessoas que são exteriormente diferentes delas.

A solução para este problema, para a entrevistada, é apenas uma: “Falar, falar, falar. Abertamente. Sem tabus, apenas assim conseguimos conhecer e compreender melhor o outro. Na diferença conseguimos ser muitos melhores como seres humanos.”

Uma frase que não posso deixar de incluir é a seguinte: “Temos de ver a pessoa. Não é o cigano, é o António. Não é o negro, é o Manuel.”

Quanto às manifestações racistas em Portugal, diz que as pessoas desvalorizam, “Porque não têm a experiência, não percebem o impacto de determinadas coisas e faz parte da natureza humana”.

Das coisas mais ofensivas que lhe disseram várias vezes durante toda a sua vida foi dito como um elogio, “Não, mas tu és quase branca”. Isto é algo extremamente ofensivo, pois desvaloriza completamente a pessoa, valorizando-a apenas quando se aproxima do branco, que é o considerado “correto” pela sociedade. Para além deste caso, uma vez quando foi trabalhar, o seu chefe disse-lhe também que “Não estava vestida da maneira apropriada, porque estava a usar argolas e isso fazia-o lembrar as africanas das tribos”.

“Durante muitos anos utilizei o cabelo liso, não porque me tornava mais aceitável na sociedade, mas porque era o mais fácil para o meu tipo de cabelo por não haver produtos no mercado português para pessoas com cabelo como o meu. Quando comecei a usar o cabelo ao natural, houve quem me dissesse que deveria esticar o cabelo, quase a dizer que com o cabelo liso disfarço quem sou e estou dentro dos padrões de beleza europeus.”

Estes são apenas alguns exemplos dos “elogios” com tom paternalista que reforça a ideia de existir um padrão de beleza, sendo este a pessoa branca. Temos todos de fazer melhor, pensar mais, refletir sobre o racismo institucional e como poderemos erradicar estes comentários, e a ideia de existir este padrão de beleza que apenas as pessoas com tez mais clara conseguem atingir. Há beleza na diferença, apenas temos de nos livrar dos padrões que a sociedade nos impôs desde novos.

“É a tal discriminação subtil que as pessoas não se apercebem, tal como dizerem “Ah mas eu não sou racista porque até tenho amigos negros”, o que não faz sentido, seria como eu dizer “ah, eu até tenho amigos brancos” como se isso dissesse algo sobre mim.”

Falou de ao ser mulata, ser discriminada pela forma de elogio, alguma vez sentiu que não pertencia à comunidade branca nem à negra?

“Nunca senti essa discriminação por parte das pessoas negras, sinto que isso existirá sobretudo em contextos onde as diferenças étnicas são acentuadas. Sei que em alguns países há essa discriminação, mas em Cabo Verde, como muita gente já descreveu, nós somos como que um arco íris, porque há de tudo.”

A única experiência parecida com isto que teve, conta a entrevistada, foi quando estava no ensino superior e havia um grupo de estudantes africanos bolseiros na Universidade, sendo que um dia reparou que um grupo de raparigas que ia à sua frente estava a falar crioulo. “Eu fiquei super contente nunca tinha tido ninguém da minha idade na escola com quem falasse crioulo, então fui ter com elas. Comecei a falar em crioulo, mas elas falavam comigo em português. Tentei aproximar-me delas, nunca fiz parte do grupo. Isto é porque elas eram um grupo muito fechado e me viam como uma portuguesa, como se eu fosse uma amiga portuguesa branca”.

Sente que atualmente a questão do racismo está realmente melhor, ou que as pessoas apenas o escondem por não ser “politicamente correto”?

“Há muita gente que esconde, que tem receio, mas penso que comparativamente com o meu passado, hoje as coisas estão melhores. Mas há sem dúvida muita gente que esconde e que não tem noção que tem comportamentos racistas, como os exemplos que dei, e há quem esconde por ser considerado politicamente incorreto.”

A inclusão é um conceito que é cada vez mais falado e algo que se tenta incutir em cada vez mais pessoas. Como é algo tão falado, mesmo as pessoas que têm atitudes racistas mas que acham que não o são, têm receio de partilhar a sua maneira de pensar por acharem que vão ser criticados por não estarem a ser inclusivos. Com esta cultura, as pessoas em vez de tentarem aprender mais, guardam rancor e esperam que chegue alguém que partilhe das suas crenças e que fale por ele.  Se alguém com poder der voz a estas pessoas, elas passam a achar correto falarem e terem atitudes racistas, como temos visto a acontecer no nosso país.

“É um facto que há muito racismo escamoteado, muito mais do que se expressa, e é por isso que se desvaloriza. Não concordo quando dizem que Portugal é uma sociedade racista, porque a sociedade é algo muito amplo, se disserem que há muita manifestação de racismo em Portugal, já é outra conversa.”

Quanto à existência de racismo em Portugal, diz o seguinte: “Acho que há racismo em várias pessoas, em vários grupos, pessoas mal resolvidas com determinadas situações, pessoas que são preconceituosas relativamente a estereótipos, que nunca pensaram devidamente.”

A visão que as pessoas têm de África vem muito do que veem na comunicação social, que é um continente pobre e violento, concorda?

“Exatamente. África é um continente grande com as suas assimetrias como em qualquer lado. A comunicação social potencia este estereótipo, porque os documentários que existem ou mostram o exótico, que são as tribos, ou mostram os conflitos étnicos, ou bélicos ou a pobreza. Em Portugal as pessoas sabem muito pouco das outras culturas das etnias que cá estão.”

Foi mencionado o facto de as pessoas conhecerem muito pouco dos outros países, sendo um exemplo disso Germano Almeida, dos maiores escritores de Cabo Verde e vencedor do Prémio Camões, é muito pouco conhecido em Portugal. Outro exemplo dado são as Mornas, um género musical e de dança de Cabo Verde, sendo que apenas ficou conhecido por causa da Cesária Évora, uma cantora de grande reconhecimento internacional de toda a história da música popular cabo-verdiana.

Temos de ver as pessoas. Compreender as pessoas. Aceitar as pessoas. Só assim conseguiremos evoluir como sociedade.

Escrito por: HeForShe ISCSP (Margarida Fernandes)

Editado por: Rafaela Boita

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