
No início de 2020, de forma inesperada e não expectável, uma pandemia assombrou o mundo, atingindo dimensões e patamares nunca antes vistos e , impactando, de forma direta e indireta, a nível social, económico e político, toda a população mundial.
Não existem dúvidas que toda a população sofreu e, continua a sofrer, na pele as consequências decorrentes do desenvolvimento do vírus COVID-19, tendo sido expostas, de forma clara, as inúmeras fragilidades e debilidades existentes no sistema, evidenciando, assim, o déficit de uma sociedade desigual em que são predominantes e constantes as situações de racismo, xenofobia e de discriminação de género.
Contudo, apesar de ser geral os impactos da pandemia, a maioria da comunicação social hegemónica escreveu e proliferou em todos os meios a frase “estamos todos no mesmo barco” e não é correto afirmar isso. Não estamos todos no mesmo barco e nunca estivemos pois enquanto uma minoria da população conseguiu reverter a situação e lucrar –“As dez maiores fortunas do mundo facturaram perto de 900 milhões de euros por dia” (AbrilAbril, 2020), a maioria da população viu a sua vida desabar e viu-se em situações extremamente difíceis, havendo uma maior exposição das inúmeras desigualdades sistémicas existentes.
Em tempos de crise os grupos vulneráveis são sempre os mais expostos às adversidades, entre os quais, as mulheres que, perante as políticas de confinamento e isolamento social, tiveram todas as esferas da sua vida afetadas, sendo essencial salientar a necessidade de uma abordagem interseccional em que certos eixos de pertença identitários colocam as mulheres em situações de maior privilégio ou de maior opressão levando a que o nível de impacto das consequências da pandemia não seja igual para todas.
Houve um impacto em todas as esferas da vida das mulheres desde o nível laboral em que as mulheres trabalhadoras têm sido as mais prejudicadas, perdendo mais emprego e encontrando-se em situações de maior precaridade e insegurança (OIT 2020), reforçando a desigualdade e discriminação já existentes. Convém salientar que as mulheres já, a priori, recebiam salários mais baixos e tinham baixos níveis de proteção laboral, encontrando-se sempre em situações mais precárias e frágeis.
Também, dado que são as mulheres as mais presentes na linha da frente da saúde e na resposta ao vírus – 70 % dos trabalhadores de saúdes são mulheres (UNWomen 2020) – são estas as mais vulneráveis e mais afetadas.
Contudo, apesar desta forte contribuição das mulheres para a sociedade, estas ainda são visualizadas como domésticas e, desta maneira, a pandemia veio reforçar a visão tradicional da função da mulher e a divisão sexual do trabalho já há muito existente em que permanece sobre a mulher o ónus de apoiar e cuidar da família e da casa, sendo esta responsável pelo trabalho não remunerado que, obviamente, foi acentuado no decorrer deste ano com o encerramento de escolas, serviços de apoio a crianças e pessoas dependentes, creches, etc. Neste contexto a mulher foi sobrecarregada, tendo a acrescente dificuldade da diluição do espaço público e espaço privado, com os afazeres da esfera pessoal, familiar e profissional. Esta situação é extremamente alarmante para a saúde psicológica e mental.
Esta situação é ainda mais acrescida em locais de extrema pobreza ou em locais mais rurais em que, em diversas situações, as raparigas mais jovens tiveram de deixar a escola para cuidar da família ou para contribuir para o rendimento desta.
O impacto da pandemia a nível económico e social aliado às restrições e à famosa “quarentena” intensificou a violência sobre as mulheres, essencialmente, no campo da violência doméstica em que estas mulheres foram isoladas e ficaram presas com os seus abusadores, longe de possíveis ajudas, tendo aumentando, não só a percentagem de queixas e denúncias efetuadas, mas também o número de femicidios.
No campo da prostituição, também a situação foi agravada pois o panorama da pandemia atual e da crise económica trouxe uma maior necessidade de obtenção de rendimento e uma maior insegurança, impedindo que estas mulheres prostituídas abandonassem esta situação de extrema violência, e continuassem a submeter-se a riscos elevados.
Em conclusão, é preciso reafirmar que a pandemia não trouxe algo de novo mas veio reforçar e deixou cair o pano das constantes falhas do sistema perante as mulheres e perante os grupos mais marginalizados e veio, assim, demonstrar que o problema é estrutural e que esta fragilização é constantemente perpetuada pelo sistema e que em situações de crise é um “salve-se quem puder”. Retomando o dito ao inicio, não estamos todos no mesmo barco e o vírus já há muito existe e é necessário entender as suas raízes para desmantá-lo e garantir segurança e proteção a todos os membros da população, lutando por uma sociedade igualitária e digna para todos.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do Desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: HeForShe ISCSP (Renata Rocha)
Editado por: Inês Conde