Dois anos depois, “This Is America” continua bastante atual

Atualmente presenciamos grandes protestos nos Estados Unidos da América que começaram com a morte de um homem negro, George Floyd, sufocado pelo joelho de um polícia branco, Derek Chauvin.

Porque é que enfatizo a cor nesta frase? É um pouco estranho não é verdade? Não é necessário acrescentar a cor de pele de uma pessoa quando o nome já lhe dá a identidade, porém aos olhos do mundo, nem sempre é assim, e isto torna tudo numa questão racial, no privilégio do branco face ao negro, bem nítido na brutalidade da polícia americana.

Face a isto, em 2018, Donald Glover, com o pseudónimo Childish Gambino, denunciou a fachada americana no seu vídeo, ano em que houve protestos pacíficos, tal como em maioria dos anos anteriores, devido a esta injustiça. O vídeo causou alguma controvérsia e impacto, porém tudo continuou igual, e face ao que se passa hoje, invoco o vídeo e a sua mensagem, a sua letra, numa análise que se assemelha muito ao que podemos ver hoje.

Os primeiros versos repetem-se “Yeah, yeah, yeah, yeah, yeah/ Yeah, yeah, yeah, go, go away” e a acompanhá-los, vemos um homem a sentar-se na cadeira com uma guitarra, o que pode aludir à presença da música na vida da comunidade negra, como um consolo e como uma forma de se expressar e protestar de maneira pacífica, o que já foi presenciado no Apartheid, por exemplo.

Podemos ainda ver que as calças usadas por Gambino são semelhantes às do Confederate States Army. Este exército do século XIX obrigou vários escravos a fazer tarefas como construção de fortificações e outros. É um símbolo de opressão. Além disso, as duas correntes de ouro que usa também têm simbolismo, como a escravidão e obsessão pelo consumo.

Na primeira estrofe:

“We just wanna party (Yeah)
Party just for you (Yeah)
We just want the money (Yeah)
Money just for you (You)
I know you wanna party (Yeah)
Party just for free (Yeah)
Girl, you got me dancin’ (Girl, you got me dancin’, yeah)
Dance and shake the frame (Ooh)”

Em primeiro lugar é usado nestes versos um estilo de gospel choir, que alude logo à cultura que é retratada. Gospel vem do inglês “good” e “spell” que era mensagem, ou seja é uma boa mensagem, começando num tom mais descontraído e de esperança, mas sendo rapidamente interrompido.

Estas palavras, em conjunto com o vídeo, exploram a relação entre dança, festa e violência, que se combinam para compor tanto o entretenimento quanto a realidade da comunidade afro-americana. A dança é algo que está presente em todo o vídeo e que serve de crítica a como o entretenimento serve de camuflagem e distração do problema e como os medias cegam as pessoas dos verdadeiros problemas da América, alimentando-as com entretenimento e tendências sem sentido. E atenção, há um facto curioso, Gambino quando não está a dançar, está a matar e quando se refere a “Girl”, pode estar a falar da própria América, que o fez vender-se aos seus meios, ao seu vislumbre.

No final destes versos, no vídeo, o homem que víamos tocar tem um saco na cabeça e é alvejado. Assistimos ao primeiro tiro e, logo a seguir, o rapper coloca a arma cuidadosamente num pano vermelho, pano este que pode estar associado aos conservadores republicanos, enquanto o corpo apenas cai e é arrastado, mostrando que nos EUA uma arma vale mais que uma vida, apoiado na entrada do verso “This is America”. Em adição, é interessante a referência feita quando Gambino dispara, ele fá-lo na posição de Jim Crow, uma caricatura feita de uma personagem interpretada por um homem branco pintado de negro, algo conhecido como blackface, que ridicularizava o negro e que até teve nome nas leis de segregação americanas, Jim Crow Laws.

A mesma posição da personagem Jim Crow

“This is America
Don’t catch you slippin’ now
Don’t catch you slippin’ now”

Nesta parte o ritmo fica mais agressivo, já não tem uma vibe tão alegre, torna-se tenso após o tiro. Este facto tem um propósito, apela a um acordar e ver as coisas como elas são, porque isto é a América, a realidade.

Já no verso seguinte, “Look what I’m whippin’ now”, temos outras referências. A expressão alude a “whipping up”, que significa causar ou criar alguma coisa. É frequentemente usado no contexto da descrição de como produzir crack ou ganhar dinheiro. Curiosamente, isso reflete o tema da Crack Music de Kanye West, que ignora os problemas políticos enfrentados pelos afro-americanos ao distrair e lucrar com letras cativantes e movimentos de dança, o que todo o vídeo denuncia.

Os versos “Look how I’m livin’ now/ Police be trippin’ now (Woo)” é uma referência explícita à brutalidade policial na América, onde o racismo está muito presente, e onde o simples facto de existirem ou de terem conseguido ter sucesso na vida é motivo para mandar parar estas pessoas ou abordá-las, e levar a uma detenção ou uma morte.

Seguidamente, deparamo-nos com os versos “Guns in my area (Wordmy area) / I got the strap (Ayy, ayy) / I gotta carry ‘em”, onde Childish alude à glorificação da violência armada e à realidade da autodefesa. A violência armada e as armas em geral são tópicos muito retratados no rap e no hip-hop, o que cria uma falsa ilusão associada aos afro-americanos e às armas. O discurso sobre o controle de armas e a violência armada na América centrou-se, ao longo dos anos, em tiroteios em massa em escolas e outras áreas públicas e ignorou sempre mais a violência armada local em áreas pobres.

Em “Yeah, yeah, I’m a go into this (Ugh) / Yeah, yeah, this is guerilla (Woo)”, a guerra de guerrilha é mencionada, e esta dá-se geralmente com um grupo menor a combater uma força militar maior. A música em si funciona como uma espécie de guerrilha, porque nunca são explícitas as críticas, facto que se assemelha a métodos mais clássicos de guerra.

Com os versos “Yeah, yeah, I’ma go get the bag / Yeah, yeah, or I’ma get the pad”. ele critica o rap popular e falta de mensagens dele sobre a atual situação política, enquanto que, por outro lado, se concentra nas festas. “Bag” pode representar dinheiro ou drogas, enquanto “pad” pode ser uma expressão para lar mais luxuoso. De qualquer maneira, a justaposição com essas palavras e as ações no vídeo são um comentário e condenação direta da cena atual do rap.

Seguidamente com “Yeah, yeah, I’m so cold like, yeah (Yeah) / I’m so dope like, yeah (Woo )/ We gon’ blow like, yeah (Straight up, uh)”, os termos “cold” e “dope” podem retratar apatia e falta de emoção numa atmosfera caótica, como uma característica desejável. No video é nos mostrada uma insensibilidade à morte e à violência ao seu redor. Os americanos pagam e aplaudem os artistas para esconderem o que se passa atrás, e os artistas ficam presos a esses consumidores.

Ainda nesta parte podemos associar a dança, assim como outras ao longo do video, a uma dança Sul africana “Gwara Gwara”, podendo nos remeter a outros eventos de opressão face à comunidade negra, como é o caso do Apartheid.

“Ooh-ooh-ooh-ooh-ooh, tell somebody
You go tell somebody
Grandma told me
Get your money, Black man (Get your— Black man)
Get your money, Black man (Get your—Black man)
Get your money, Black man (Get your—Black man)
Get your money, Black man (Get your—Black man)
Black man”

Os versos acima apontam para a dura verdade por detrás do incentivo de uma avó: mesmo que ele consiga obter dinheiro, como afro-americano, ainda será discriminado. Gambino parece assim sugerir que, como a dança no vídeo distrai a violência que o cerca, a busca por dinheiro, o sucesso e o entretenimento em si, distrai o sofrimento e a desigualdade no sistema que persistem. Ao mesmo tempo, o sofrimento e a desigualdade acabam por contribuir para a atração do dinheiro.

No video, vemos um coro a cantar estes versos alegremente, tal como a atmosfera musical do instrumental, semelhante ao da primeira parte. No entanto é dada uma arma a Childish, com a qual alveja o coro e passa rapidamente com um tom mais pesado para “This is America”.

O massacre e sua rapidez lembram ainda o tiroteio em Charleston em 2015, no qual Dylann Roof, um jovem branco, matou nove negros no porão da igreja, o que remete à supremacia branca.

“Look how I’m geekin’ out (Hey)
I’m so fitted (I’m so fitted, woo)
I’m on Gucci (I’m on Gucci)
I’m so pretty (Yeah, yeahwoo)
I’m gon’ get it (Ayy, I’m gon’ get it)
Watch me move (Blaow)”

Gambino imita as pessoas que facilmente se distraem das questões sociais, por bens materiais e status social. Ele também combina os versos com a sua performance no video, imitando uma rapariga na parte “I’m so pretty” e um rapper com a mão na virilha e apontando uma arma como se estivessem num videoclipe dessa indústria.

Nos versos “This a celly (Ha) / That’s a tool (Yeah) / On my Kodak (Woo) Black”, pode remeter à constante luta de “it’s a phone, don’t shoot”. Em março de 2018, um homem negro chamado Stephon Clark foi baleado oito vezes nas costas e morto no quintal de sua própria casa em Sacramento, Califórnia devido a essa situação. Polícias confundiram o seu telemóvel por uma arma, na sequência de presumirem que ele era responsável por assaltos na área local. O caso ainda está sob investigação. No video, vários adolescentes numa borda têm seus telemóveis, aludindo aos muitos casos em que os telemóveis têm sido os únicos a denunciar a verdade.

Hunnid bands, hunnid bands, hunnid bands (Hunnid bands)
Contraband, contraband, contraband (Contraband)

I got the plug in Oaxaca (Woah)
They gonna find you like “blocka” (Blaow)

Aqui fala de “contraband”, que remete para o contrabando ilegal, geralmente armas ou drogas, que segue para a referência de Oaxaca na próxima linha, uma cidade mexicana que tem má fama devido à droga. Além disso, assemelha à música “Contraband”, de Migos. Isso poderia ser uma referência à onda popular, mas muitas vezes difamada, de jovens rappers pelo novo estilo que lhe dão.

Durante esse segmento do video, uma figura com um capuz passa de cavalo pelo espaço do armazém. Isso pode ser interpretado como um cavalo branco que conota simbolismo apocalíptico relacionado ao Apocalipse, capítulo 6: “E olhei, e vi um cavalo pálido; e o nome que estava nele era Morte, e o Inferno o seguiu”. Mostra a confusão da situação que está a ser ignorada.

Após estes versos, há um silêncio em que o rapper fica sozinho em cena e coloca os braços e as mãos no sentido de uma arma, mas afinal apenas tira uma espécie de cigarro do seu bolso, o que me remete ao facto da polícia achar que tudo o que um negro possa tirar do bolso pode ser uma arma.

“Ooh-ooh-ooh-ooh-ooh, tell somebody
America, I just checked my following list, and
You go tell somebody
You mothafuckas owe me

Aqui há a participação de Young Thug  nos background vocals e onde se refere a como os EUA falharam em dar à população afro-americana o pagamento dos “Quarenta Acres e uma Mula”, uma frase histórica que se refere a como o governo americano deu uma ordem prometendo distribuir terras e reparações aos escravos recém-libertados, mas anulou a promessa; o que explica ainda mais as frases da avó ao neto, insinuando que, como os Estados Unidos não deram o dinheiro para os negros como deveriam, a única opção para o homem negro é apressar-se e receber o dinheiro devido. Nessas falas, também se reclama dos media não darem tanta atenção a artistas que fazem a sua arte, denunciando os problemas.

Na parte em que Childish está em cima do carro e diz “1, 2, 3—get down”, esse segmento interpola The Boss, de James Brown, da trilha sonora do Black Caesar de 1973, uma referência já utilizada por muitos outros rappers e produtores. O movimento que faz ao atirar o cigarro que tem na mão é semelhante ao famoso passo de dança de Michael Jackson, começando a desaproximar-se depois a câmara e a desvanecer para preto. Porém há ainda algo a apontar, quando ele diz “1, 2, 3, get down” e a música atinge seu ápice, parece menos um prefixo para festas e mais um aviso de “esta é a América, baixe-se, proteja-se”. Para além disto, os carros que o rodeiam são todos modelos mais antigos, podendo até representar uma falta de progresso na sociedade.

“You just a black man in this world
You just a barcode, ayy
You just a black man in this world
Drivin’ expensive foreigns, ayy

You just a big dawg, yeah
I kenneled him in the backyard
No, probably ain’t life to a dog
For a big dog”

Os momentos finais do vídeo mostram Gambino a correr, aterrorizado, por um longo corredor escuro, longe de um grupo de pessoas, enquanto Young Thug canta versos que parecem diminuir o homem negro. Esta corrida de medo remete a uma longa tradição de afro-americanos terem que correr para salvar suas vidas e mostra também o momento em que se acorda e se percebe que o sonho americano não é como se pensa, e procura-se uma saída.

Nestes últimos versos é feita uma comparação entre um cão e um afro-americano nos Estados Unidos. É uma forma de mostrar que para muitos americanos, homens e mulheres negros não têm uma maior importância que animais, e um canil restringe os cães, semelhante à maneira como um humano pode ser preso. Por fim, “dawg” sugere que até artistas de sucesso ainda devem sempre algo às suas indústrias, e mesmo que um homem negro se torne rico, continuará a lidar com o racismo.

Em síntese, toda a letra e o vídeo condena os Estados Unidos da América por esconderem a realidade vivida e o racismo presente no sistema por detrás do entretenimento. Por isso é que é introduzida a dança e sentimo-nos um pouco distraídos e não conseguimos perceber tudo o que se passa por detrás, apenas abrimos os olhos quando os crimes acontecem.

Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do Desacordo ou dos seus afiliados. 

Escrito por: Rafaela Boita

Editado por: Magda Farinho

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