ISCSPoiler – The Irishman, o conto profundo sobre memória e o vazio

Scorsese desconstrói e reinventa o género que ajudou a criar num épico e majestoso drama sobre o tempo, a culpa e o vazio existencial. Reúne Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci. Está disponível na Netflix e é um dos fortes candidatos a premiações.

Joe Pesci e Robert De Niro contracenam em The Irishman.

Scorsese inicia a obra invocando o mítico “tracking shot” de Goodfellas enquanto entramos vagarosamente num lar de idosos ao som de “In the still of the night” dos The Five Satins. Mas a energia já não é a mesma, já não é de entusiasmo e confiança, mas sim de reflexão e melancolia. É como que um pré-aviso importante de que o que estamos prestes a testemunhar não é um conto glamoroso e elétrico sobre o submundo do crime. Chegamos tarde, a festa já acabou. A verdade é que iremos viajar pelas memórias da confissão de um homem que não deu pelo tempo passar, até finalmente o sentir. O homem debilitado e misterioso é Frank “Irishman” Sheeran. Interpretado pelo inconfundível Robert De Niro, que há décadas constituiu uma das maiores duplas e parcerias de sempre ao lado de Martin Scorsese.

A obra atravessa grandes momentos da história e assistimos a tensões políticas, assassinatos, e, decididamente, a dilemas profundamente humanos. Sheeran, veterano da II Guerra Mundial, acaba como camionista de uma empresa de distribuição de carne. Os flashbacks são propositadamente apresentados com um brilho típico que relembra os filmes technicolor dos anos 40 e 50, pois no fundo, é uma fragmentação de uma memória provavelmente manipulada que testemunhamos. É num acaso trivial que conhece Russel Buffalino (Joe Pesci) , o calmo e ponderado siciliano e chefe da família mafiosa da Pensilvânia com quem cria uma ligação paternal. O ritmo dinâmico e a fluência do filme transporta-nos numa espiral que revela a rápida inserção do protagonista num mundo de intrigas, sentenças sanguinárias, negócios duvidosos e tradição, onde acaba por participar ativamente, fazendo “eliminar” alguns problemas do patrão.

A família acaba por ficar à margem do seu dia a dia e as consequências das decisões que toma fazem surgir um fantasma interior que o assombraria para o resto dos seus dias. É na sequência de uma das suas missões que o mesmo é lançado para a outra face da moeda – Jimmy Hoffa (Al Pacino) – o explosivo e infame líder sindical que desapareceu a 30 de Julho de 1975. Sheeran desenvolve uma intrigante amizade com Hoffa, cuja figura aos olhos de Peggy (a filha silenciosa e observadora de Sheeran e também presença consciente da obra) não representa uma ameaça, contrariamente a Buffalino, que por mais atencioso que tente ser, acaba por intimidá-la – as crianças têm destas coisas, estes pressentimentos que conseguem distinguir as mais subtis diferenças. Assim, o hitman vê-se cercado numa teia que relaciona o segundo maior cargo político americano à realidade do crime organizado (que tantas vezes andam de mão dada), fazendo-o tomar partidos que o marcariam.

                      Al Pacino (Jimmy Hoffa) e Lucy Gallina (Peggy Sheeran)

São as performances que seguram a história e que dão substância à obra. O CGI rejuvenescedor que tanto preocupou a crítica acabou por não afetar a narrativa e as interpretações: o que se estranha, depois entranha-se. De Niro entrega uma performance brilhante, que transparece facilmente uma amargura contida e aquilo que fica por dizer com um simples olhar. Al Pacino sobressai com um carisma e energia que representam alguns dos melhores momentos e alívios cómicos, é a sua força e presença volátil característica que tornam vibrante a sua passagem pela história desde o primeiro instante. Joe Pesci marca pela mudança de registo, o incontrolável e maquiavélico Tommy DeVito de Goodfellas ou o neurótico Nicky Santoro de Cassino são passado – Pesci revela-se ponderado, calmo, atencioso… mas não menos implacável.

É notável a breve mas poderosa presença de outras caras conhecidas: Harvey Keitel como Angelo Bruno ou Anna Paquin (Peggy em adulta), que desconforta o pai com o seu silêncio (congelamos quando eventualmente fala). São suportados pelo roteiro inteligente e dinâmico de Steve Zaillian que entrega diálogos míticos e catchphrases inesquecíveis num conto que nos deixa sem pulsação assim que rodam os créditos finais. Não faltam os elementos essenciais na obra scorsesiana: figuras religiosas, comédia de situação e humor requintado, banda sonora complexa, rítmica e característica, e situações que acontecem a meio de refeições e petiscos regionais. É um filme obviamente pessoal e que só poderia ser realizado agora.É a obra de um mestre que tende nesta fase da sua vida, a refletir e analisar o passado enquanto tenta enfrentar a incerteza do futuro.

The Irishman dá-nos tudo, e depois, de forma cruel mas necessária, atinge-nos naquilo que nos perturba como seres humanos – a nossa insignificância nas garras do tempo. Caímos a seco com o peso dos eventos anteriores, o quão esculpiram o destino das várias personagens e aquilo que ficou. A própria narrativa visual torna-se mais crua e fria – outro excelente trabalho do diretor de fotografia, Rodrigo Prieto. Sheeran, que interrompeu várias vidas, ocupa agora o seu tempo a lidar com a culpa, com o passado que não pode mudar e à espera do derradeiro nada, do silêncio e do fim. “It’s what it is.”

Escrito por: Catarina Luís

Editado por: Beatriz Duarte

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