O filme português “A Herdade”, de Tiago Guedes, é uma das mais recentes produções nacionais e está entre os 93 candidatos ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Durante quase 3 horas de duração, esta obra acompanha a história de João Fernandes (Albano Jerónimo), um ilustre herdeiro de um vasto terreno numa localidade além Tejo. O filme foca-se em três partes da vida do protagonista: inicialmente, a sua infância, marcada pelo suicídio do irmão e pela visão do mesmo enforcado numa árvore, cenário que o pai o obrigou a ver. Depois, a sua a vida adulta, primeiramente durante o início dos anos 70, desde os tempos do ainda Estado Novo até depois da revolução e, mais tardiamente, no ano de 1991.
Penso que cada parte do filme contribui imensamente para a compreensão do caráter e da relação entre as personagens: por exemplo, em pequeno, João é tratado fria e duramente pelo pai, o que tem repercussões no modo como trata o seu filho mais velho, que por sua vez cresce a odiá-lo e começa a ter atitudes delinquentes.
Há também uma espetacular caracterização não só dos atores, que parecem mesmo envelhecer ao longo do tempo do filme, mas também das épocas em questão, principalmente da época do Estado Novo. Muitas situações marcantes daquela época são fielmente retratadas. Antes da revolução, a perseguição pela PIDE aos opositores do regime, a necessidade do governo de ter o apoio público dos grandes proprietários, a sociedade católica onde a igreja tinha um enorme poder e onde os padres exerciam grande influência. Depois da revolução, a reforma agrária, o reivindicamento das terras pelos trabalhadores, a reviravolta comunista, a fuga de vários indivíduos considerados fascistas.
A nível de comportamentos sociais, podemos observar outros vários acontecimentos que ilustram magnificamente a vida dos portugueses nos anos 70: João trai constantemente a mulher, Lenor, chegando até a engravidar Rosa, a criada. No entanto, esta vive resignada com o comportamento do marido, acabando por se tornar uma pessoa infeliz, apesar da sua cultura e da sua riqueza – o que nos passa a importante mensagem de que o dinheiro e o conhecimento, infelizmente, não garantem a felicidade de ninguém. Por outro lado, a própria criada Rosa também vive um casamento infeliz e infiel, pois o seu marido, Joaquim, passa a vida alcoolizado. De mencionar, porém, que apesar de João não pagar grandes quantias de dinheiro aos homens que trabalham para ele, mantêm-se um patrão leal e preocupado.
Já em 1991, é possível identificarmos o grande contraste entre aquilo que eram os anos 70 e os anos 90. Nas maneiras de vestir, na sociedade e nos comportamentos: por exemplo, Leonor finalmente emancipa-se e pede o divórcio. Contudo, apesar do passar dos anos, João continua o mesmo homem adúltero e agressivo, com o mesmo espírito de “macho latino” e com a mesma dificuldade em lidar com as suas emoções, pois, apesar de querer passar a imagem de homem forte e austero, é alguém com uma fraca inteligência emocional. A história acaba como começou, o que só por si é uma ideia bastante interessante e cativante, com o personagem principal a dirigir-se para uma pequena ilha abandonada, local onde se refugia quando as coisas lhe correm mal.
São também de salientar as incríveis imagens do filme, que nos mostram belas e desmaiadas paisagens de um Portugal profundo e esquecido. Um excelente trabalho, não só do realizador mas também de todos os que ajudaram a produzir o filme e, especialmente, dos atores. Albano Jerónimo encarna o protagonista numa representação soberba e estupenda, bem como todos os atores secundários que vivem intensamente os sentimentos e as preocupações dos seus personagens.
“A Herdade” coloca Portugal no pódio das produções cinematográficas, é o espelho de uma elite ao longo de várias épocas, uma explicação da condição do homem inserido no tempo e no espaço.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Beatriz Gouveia Santos
Editado por: Cláudio Nogueira