A rubrica A Estante está de volta e traz com ela uma reflexão sobre o mais recente livro do humorista Ricardo Araújo Pereira, de seu nome Estar Vivo Aleija, publicado em setembro deste ano. Esta obra trata-se de uma compilação de crónicas que o autor escreveu para o público brasileiro no jornal Folha de São Paulo, durante o último ano e meio. Por sua vez, esta publicação é a sucessora da sua anterior colectânea de textos humorísticos chamada Reaccionário Com Dois Cês, publicada em novembro de 2017.
“Eu não tenho nada para dizer ao público brasileiro, mas não vale a pena o público brasileiro, começar a sentir-se especial porque a verdade é que eu não tenho nada para dizer a ninguém. Sei quase nada sobre quase tudo – circunstância que, felizmente, nunca impediu uma pessoa de escrever nos jornais.”
É assim que Ricardo Araújo Pereira (RAP) inicia o seu discurso neste compêndio de crónicas publicadas no jornal brasileiro – com a sua característica modéstia disfarçada de sarcasmo, esbarrando nas margens do meta-humor. Para os portugueses, esta típica descrição desenhada pelo próprio RAP já não é algo que nos cause estranheza. Desde os primórdios dos míticos Gato Fedorento até às suas rubricas radiofónicas, televisivas e jornalísticas, que já estamos habituados à sua forma cerebral de dissecar os grandes problemas da humanidade, bem como as maiores futilidades e patetices que assombram o quotidiano do “primeiro mundo” através do uso da sátira de uma maneira brilhante como só ele mesmo. Bem sei que o próprio Ricardo discordaria de tal afirmação sobre a sua pessoa, mas vamos colocar as modéstias de parte.
Não é a primeira vez que vemos RAP a quebrar fronteiras com os nossos irmãos brasileiros – desde as suas aparições em talk shows como o do grande Jô Soares ou do seu contemporâneo Danilo Gentili, passando por palestras ao lado de um dos seus pares, Gregório Duvivier, ou até mesmo participações em festivais de humor como o Risadaria, onde RAP subiu aos palcos para fazer stand up. Desta vez, decidiu arriscar e aceitar o convite do jornal brasileiro Folha de São Paulo, onde lhe foi proposto preencher semanalmente uma rubrica homónima, na qual Ricardo Araújo Pereira fala sobre tudo, mas mais importante, sobre nada. Esta parceria correu tão bem que o cronista continua até hoje a escrever para o jornal brasileiro.
Já em Portugal, RAP brinda-nos semanalmente com a sua rubrica “Boca do Inferno” na revista Visão, onde o humorista se debruça sobre os mais variadíssimos temas. Algo que podemos reparar ao ler esta nova compilação de crónicas, lançada a setembro de 2018, de seu nome “Estar Vivo Aleija”, é que alguns dos textos humorísticos do autor possuem temas reciclados de trabalhos anteriores ou em que o comediante já tenha referido de certa forma em alguma aparição (algo que os seguidores mais atentos do trabalho de RAP irão notar). Desde crónicas brilhantes como “O Raningue“, “Admirável Mindset Novo“, “A Auto-Ajuda Prejudica-me“, “O Belo Horrível” ou “Kierkegaard e o Candy Crush“, referem de uma maneira ou de outra assuntos já discutidos pelo próprio ao longo da sua carreira e, desta vez, o autor decidiu colocá-las numa montra para o povo brasileiro as vislumbrar.
Algo que sempre admirei em Ricardo Araújo Pereira é a facilidade com que este faz parecer o nada tão interessante, quer ele o admita ou não. Por exemplo, a pessoa comum não pegaria em temas banais como batatas ou moscas para material humorístico, mas RAP com uma simplicidade inigualável consegue transformar esses tópicos aparentemente comuns em matéria risível – como na crónica “Amor e Batatas“, onde num texto nostálgico, o comediante nos fala de como as batatas moles são pequenas e meigas demonstrações de amor, ao contrário das batatas fritas, com o seu charme cruel e aguçado; ou como na crónica “Moscas: Subsídios para um estudo“, onde o humorista faz uma breve tese sobre o seu descontentamento perante o facto de poucos pensadores reflectirem sobre moscas em detrimento de outros temas como os populares temas “amor” ou “morte”, acabando numa comparação entre as moscas e os comediantes.
Para além de Ricardo Araújo Pereira utilizar temas banais do quotidiano e, por vezes, palermas (atenção: brilhantemente palermas, não comecem a atirar pedras virtuais) como material de estudo para as suas crónicas, não podemos ignorar algo que o comediante faz de maneira fenomenal: a forma como este disseca certos problemas sociais, cruzando-a com um humor existencialista difícil de dominar, disfarçada por figuras de estilo que sejam capazes de ser relacionáveis para o leitor comum. Isto é algo que o autor tem vindo a aperfeiçoar ao longo dos seus vastos anos de carreira no mundo humorístico, sempre com as suas inúmeras referências capazes de acompanhar os seus pensamentos.
Algo que é capaz de ilustrar perfeitamente o parágrafo anterior é uma das minhas crónicas predilectas desta sua colectânea, chamada “Vende-se: Angústia“, na qual eu gostaria de terminar esta pequena reflexão sobre o livro “Estar Vivo Aleija”. Nesta crónica, o autor recorda-se de um episódio da sua juventude, onde durante uma aula de Religião e Moral é pedido aos alunos que escrevam num papel duas perguntas que assombrem as pobres almas daqueles adolescentes, de modo anónimo. Enquanto alguns alunos optaram por perguntas que vivem na cabeça do adolescente comum como “Masturbação faz mal?” ou “O preservativo é seguro”, o papel anónimo de Ricardo Araújo Pereira dizia “O que é que eu estou aqui a fazer?”. Este aglomerado de palavras causou entre os seus colegas um grande surto de gargalhadas e no seu professor um encolher de ombros, como quem já sabia de quem pertencia aquele papel, não entendendo que era uma questão legítima. É então que o professor prossegue a leitura desse mesmo papel e segue a pergunta “Porque nascemos se depois temos de morrer?”. Aí todos já entenderam o teor da pergunta de Ricardo. Uma pergunta demasiado existencialista para um mero adolescente de 13 anos.
Quis concluir este artigo, fazendo uma paráfrase desta crónica, porque encontrei uma certa ironia no facto de um jovem Ricardo Araújo Pereira fazer a pergunta “O que é que eu estou aqui a fazer?” em que obteve uma resposta imediata por intermédio de risos. Gosto de imaginar que aos 13 anos, RAP descobriu acidentalmente o seu propósito. Com a sua pergunta, o humorista ficou, de facto, a perceber aquilo que ele anda cá a fazer: rir.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Cláudio Nogueira