Francisco Sá-Carneiro (fundador do PSD) e Adelino Amaro da Costa (co-fundador do CDS), as suas respectivas esposas, Snu Abecassis e Maria Manuela, e o chefe de gabinete de Sá Carneiro, António Patrício Gouveia, faleceram na noite de 4 de dezembro de 1980, após um “acidente” de aviação a bordo do Cessna 421, que rumava ao Porto. Com eles morreram também os pilotos que comandavam o avião. Rumavam ao Porto para que o chefe de governo da altura, Francisco Sá-Carneiro e o seu Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, marcassem presença no comício de encerramento da campanha presidencial do então candidato a Presidente da República, António Soares Carneiro, no qual depositavam o apoio do governo.

Antes de falar do desastre em si, é necessário enquadrar este acontecimento no panorama em que se encontrava Portugal no final da década de 70. A queda do Estado Novo ainda era um acontecimento recente e, após a fundação de partidos como o PSD, o PS ou o CDS, o país prosseguiu um rumo liberal depois da instabilidade política que se verificou no pós 25 de abril, principalmente no verão de 1975. A 3 de janeiro de 1980, Francisco Sá Carneiro toma posse como primeiro-ministro do VI Governo da República Portuguesa em regime de coligação com o CDS, a Aliança Democrática (AD), do qual Diogo Freitas do Amaral era vice-primeiro-ministro e, pela primeira vez desde o 25 de abril, havia espaço para estabilidade política.
Depositava-se bastante confiança no presidente e fundador do Partido Social Democrata, que apesar de por vezes ser acusado de populismo, tinha uma visão política baseada no cumprimento dos direitos e deveres do cidadão, aumentando a despesa social e apoiando a Reforma Agrária no Alentejo durante o curto mandato que presidiu. Sendo opositor do coletivismo socialista, como do total intervencionismo do Estado, albergando no seu partido membros do operariado, da classe média e da classe média baixa, assumiu o objetivo de construir uma “sociedade socialista em liberdade” e decidiu dar o nome de “social-democracia portuguesa” à ideologia do seu partido.
As eleições presidenciais estavam marcadas para dia 7 de dezembro de 1980, em que António Ramalho Eanes, independente mas apoiado pela maior parte dos partidos socialistas, ainda que com a excepção do secretário-geral do PS, Mário Soares, tinha António Soares Carneiro, apoiado pela Aliança Democrática como grande adversário direto. O comício de encerramento da campanha de Soares Carneiro iria ter lugar no Porto, onde Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa eram esperados para mostrar o apoio que depositavam no candidato da AD. O avião, cujo modelo era o Cessna 421, havia sido alugado por Adelino Amaro da Costa, tendo convidado Sá Carneiro, sua esposa e chefe de gabinete para embarcarem no pequeno avião privado. Apenas 26 segundos depois de deslocar da pista do Aeroporto da Portela rumo ao Porto, o avião despenhou-se no bairro das Fontainhas, em Camarate, bastante próximo do aeroporto lisboeta. Testemunhas surgiram, algumas dizendo que viram o avião a incendiar-se assim que embateu no solo e outras, mais contraditórias, alegam ter visto as chamas no Cessna quando este ainda se encontrava no ar, falando-se em possível atentado.

No próprio dia do acidente, foi aberto um inquérito preliminar, dirigido pelo Ministério Público e investigado pela Polícia Judiciária que, no entanto, se verificou infrutífero, após o relatório publicado no dia 9 de outubro de 1981, que confirmava a não existência de qualquer indício de crime, aguardando por “melhor produção de prova”.
Em 1983, é instaurada a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito promovida pelo Ministério Público com vista a esclarecer todas as dúvidas que de um acidente se tratava. As Comissões de Inquérito foram surgindo uma atrás da outra, cada uma com uma nuance nova, fosse do foro médico-legal, como a presença de vestígios metálicos nos pés do piloto, fosse do foro da peritagem, como de que maneira haviam dobrado os flaps do avião depois do impacto. Ricardo Sá Fernandes, advogado das famílias das vítimas, escreveu “O Crime de Camarate”, onde explicita ao longo de quase 700 páginas todas as questões técnicas das investigações, mas falando delas aqui tornaria o artigo bastante pesado. Até 2015 foram realizadas 10 Comissões de Inquérito, tendo sido concluído na Assembleia da República que haviam fortes indícios de atentado no incidente de Camarate, sendo um deles o assassinato de José Moreira (fabricante do avião) dias antes de este ser presente à Comissão Parlamentar para ser inquirido.
Ainda assim, findadas as 10 Comissões Parlamentares de Inquérito, a teoria do acidente manteve-se em cima da mesa e as possibilidades de atentado foram definitivamente postas de parte, ainda aguardando por “melhor produção de prova”, mais uma vez. Ora, mas afinal o que correu mal com o Cessna 421 no dia 4 de dezembro de 1980? Segundo os teóricos que contrariam a tese acidental, havia sido colocada uma bomba no avião antes de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa embarcarem. Antes de expormos a teoria do atentado, olhemos para as circunstâncias que por ventura poderiam causar descontentamento em relação ao chefe de governo e ao Ministro da Defesa.

A teoria defendida pelo advogado que representa as famílias das vítimas de Camarate, Ricardo Sá Fernandes, é a de que a morte de Sá Carneiro foi um dano colateral associado a uma tentativa de assassinato de Adelino Amaro da Costa. Mas porquê? A setembro de 1980 estalou a guerra no médio-oriente que opôs o Irão ao Iraque e, embora na altura Portugal não produzisse armas para o conflito, visto que a produção bélica nacional não preenchia as exigências de um conflito armado da envergadura daquele, era sabido que existiam portugueses a beneficiar da posição geo-estratégica do nosso país para servirem de “placa rotativa” entre a origem do fabrico das armas (EUA, por exemplo) e o local conflituoso (médio-oriente). A teoria do “atentado” visar Adelino e não Sá Carneiro ganha maior credibilidade ao tornar-se público que Sá Carneiro apenas viajou no Cessna naquela noite por convite de Adelino Amaro da Costa à ultima da hora, com as provas de anulação dos bilhetes da TAP que Sá Carneiro havia reservado para ele e para Snu Abecassis, sua esposa.
Diogo Freitas do Amaral, fundador do CDS e sucessor de Sá Carneiro, afirmou que lhe havia chegado às mãos, semanas depois do acidente, um telegrama do então embaixador português em Londres, dizendo que este havia sido visitado por altas patentes da Scotland Yard. A polícia inglesa referiu ao embaixador que ultimamente andavam a vigiar um indivíduo de nacionalidade moçambicana por tráfico de armas e fabrico de engenhos explosivos, chegando mesmo a segui-lo até Lisboa, onde o encontraram no hangar dos pequenos aviões privados do Aeroporto da Portela, na véspera do dia do desastre. Esse homem dava-se pelo nome de Sinan Lee Rodrigues. O telegrama foi levado e entregue ao diretor-geral da Polícia Judiciária em mão, no entanto, quando mais tarde foi procurado para servir de prova nas Comissões de Inquérito, o telegrama e todas as suas cópias haviam-se evaporado, tanto dos arquivos da PJ, como da Embaixada Portuguesa em Londres e do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Ao longo dos anos vão surgindo outros nomes e novas incredulidades gritantes no Caso de Camarate. Um dos nomes mais mediáticos deste caso é José Esteves, antigo segurança do CDS. Foi apenas em 2006 que José Esteves teve a “coragem” de admitir o seu envolvimento no caso pois, por essa altura, o crime já havia prescrito de maneiras que este já não podia ser indiciado. Foi em declarações à revista Focus que José Esteves disse: “Eu fabrico a faca, mas não dou a facada”, admitindo que fabricou uma bomba que foi colocada no Cessna onde viajavam Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, mas que o objetivo da explosão seria apenas “pregar um susto a Soares Carneiro” e que nunca era suposto a bomba explodir com o avião já no ar. Completa dizendo que montou um “engenho incendiário para pregar um susto” e que o entregou “(…) na Rua Augusta, numa loja, debaixo de um puff” e que já sabia que se destinava a um indivíduo de cor escura, referindo-se a Sinan Lee Rodrigues. José Esteves há muito que refere que deseja ser presente à justiça para revelar tudo aquilo que sabe, mas os inquéritos foram impedidos pela PJ e pelo Ministério Público, vá-se lá saber porquê.
A entrevista de José Esteves à revista Focus é possivelmente a abertura de portas que a investigação necessitava. José Esteves alega ter sido contratado por Frank Sturgis (agente a solo da CIA), tendo recebido 200 mil dólares americanos pelo fabrico de uma bomba incendiária. Este entra em pormenores, dizendo que o encontro com o espião americano teve lugar num iate na baía de Cascais. Fernando Farinha Simões, um dos criminosos portugueses mais famosos, com crimes ligados ao fabrico de explosivos e que em 2006 se encontrava preso, admitiu também o seu envolvimento no crime de Camarate, alegando também ter sido contratado por Frank Sturgis, desta feita para colocar a bomba no avião. As ordens do espião Frank Sturgis aos operacionais portugueses surgiam de uma entidade superior, de um indivíduo que segue de perto as questões políticas portuguesas e que também chegou a ser diretor da CIA: Frank Carlucci, embaixador americano em Portugal entre 1975 e 1978, anos em que adquiriu amizades importantes como… Mário Soares.
O interesse de Carlucci e Sturgis na liquidação de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa prende-se com o facto dos dois políticos possuírem dossiers com informação oficializada sobre o envolvimento de portugueses no tráfico de armas entre os EUA e o médio oriente, tráfico esse financiado pelo Fundo de Defesa Militar do Ultramar, criado durante a guerra colonial. A interrupção do papel de Portugal como trampolim deste esquema de tráfico bélico afetava diretamente a administração americana, bem como algumas figuras portuguesas que, supostamente, beneficiavam com o tráfico, como o major Canto e Castro ou o General Pezarat Correia. Segundo Farinha Simões “a pessoa de Sá Carneiro não era muito querida nos EUA” e Carlucci havia-lhe dito que “existem problemas em Portugal no transporte e venda de armas”, incumbindo mais tarde o sujeito português de um “trabalho importantíssimo”, que seria afastar os principais responsáveis pelo bloqueio ao tráfico. Visto que Adelino Amaro da Costa investigava o Fundo de Defesa Militar do Ultramar e que Sá Carneiro era chefe de um governo liberal que estava pronto para acabar com todos os lobbies existentes na política portuguesa da altura, era necessário afastar tanto um como o outro e a via política era impossível, visto que a AD tinha ganho as eleições ainda há pouco tempo. Restava-lhes a via de um atentado disfarçado.
Olhando não só para as provas físicas mas para toda a rede de influências que poderá ter sido montada, visando satisfazer os interesses de figuras importantes portuguesas junto da CIA e da administração interna americana, a razão mais plausível para a queda do Cessna 421 da noite de 4 de dezembro de 1980, que vitimou o então primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e seu Ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa, parece-me ser a de um atentado bastante bem pensado que resultou da excelente articulação de forças entre a CIA, a PJ, o Ministério Público e a Embaixada Americana em Portugal.
Recomendo a leitura do livro “Crime de Camarate“, de Ricardo Sá Fernandes, que pode elucidar ainda mais o leitor do que este artigo ou do que uma investigação profunda pela internet. A meu ver, 38 anos depois do sucedido, o Caso Camarate é provavelmente uma das maiores vergonhas da justiça portuguesa porque reunidas todas as questões de que falei aqui, juntando aos aspetos técnicos referidos no livro de Ricardo Sá Fernandes, é mais que provado que Camarate foi um atentado, um crime premeditado que nunca encontrou maneira de culpar os verdadeiros culpados e, posteriormente, condená-los da maneira devida.
Este artigo de opinião é da pura responsabilidade do autor, não representando as posições do desacordo ou dos seus afiliados.
Escrito por: Bruno André
Editado por: Inês Queiroz
Um pensamento sobre “A maior vergonha da justiça portuguesa: “Acidente” de Camarate 38 anos depois”