Tiago Gonçalves, natural de Constância e mais conhecido por Nerve, lançou-se no panorama musical português aos 18 anos com a estreia do álbum Eu Não Das Palavras Troco a Ordem, em 2008, e regressou apenas em 2014, talvez muito por causa da “filha da procrastinação”, que o próprio faz questão de referir, para lançar Palha, Paus e Pérolas 2005-2012 (2014). Nerve assumiu-se, através do lançamento do mais recente projeto Trabalho e Conhaque ou A vida Não Presta & Ninguém Merece a tua Confiança (2015), como um dos melhores rappers da atualidade, apesar de ser, muitas vezes, mal-interpretado devido ao seu resvalo para o Niilismo, corrente filosófica que é caracterizada pela desacreditação no mundo real e nas verdades consensuais, como também pela desvalorização dos mesmos.
Ora comecemos então a análise a este álbum que, para os ouvintes menos esclarecidos de Nerve, pode parecer tanto antropocêntrico como incoerente, desfasado e até mesmo arrogante. As expectativas para este álbum eram grandes, motivadas pelo lançamento da compilação Palha, Paus e Pérolas e da EP Água do Bongo, no ano de 2014, mas também muito por causa de toda a “mitologia” que o próprio Nerve fazia envolver à volta do lançamento do novo álbum. As idiossincrasias de Nerve já não eram totalmente desconhecidas do público e o seu estilo algo urbano-depressivo parecia, a pouco e pouco, ir conquistando cada vez mais gente.
O tema mais sonante do álbum talvez seja Nós e Laços. Esta música, além do jogo de palavras que Nerve faz com “nós” (como pronome pessoal e como nós de corda) e laços (relacionamentos e literalmente laços), mostra-nos uma indiferença para com o sexo feminino, retratando uma história de amor que correu mal porque Nerve, segundo o que o próprio escreve na letra, tem relações e não mantém relações. Ao mesmo tempo que, objetivamente, nos conta a história de uma relação que não correu bem, nas entrelinhas podemos encontrar mensagens um pouco mais abrangentes e subjetivas.
“Por vezes, queria enforcar-me, mas não sei dar aquele nó na corda
Queria ser um robô, mas não sei dar o nó na gravata
Queria dizer-te isto antes, mas tinha um nó na garganta
Porque é que eu não quero laços? Eu e nós não adianta”
Com isto, Nerve mostra-se, de certa forma, melancólico, e parece criticar de maneira leviana todo o sistema atual, se pegarmos no “nó na gravata” como uma metáfora para um emprego normal, ao qual Nerve renuncia, apesar de querer ser um robô, ou seja, mais um indivíduo que contribui para a anomia social que o rapper pretende elucidar nesta faixa. Diz ainda “Isto sou eu a ir embora, isto sou eu a sorrir…” como que dizendo que, para ele, tal relação não dá para mais, mas que no entanto sorri, talvez porque o sujeito a quem Nerve se refere no tema, não lhe despertava muito interesse, remetendo-nos novamente para a renúncia ao sistema, de que Nerve se orgulha de não fazer parte. É em Nós e Laços que entra, pasme-se o leitor, Amália Rodrigues, num interlúdio que nos pode parecer fora do contexto mas que Nerve sentiu ser adequado.
A quarta faixa do álbum, de seu nome Coincidências, é um exemplo perfeito do antropocentrismo e Niilismo pelo qual Nerve se pauta. Logo a primeira quadra da música reúne toda a sua essência, repare-se:
“Eu estou a fazer história
Enquanto carrego o fardo de negar tudo aquilo que a história me ensinou até agora
Como Darwin“
Completando com:
“Quero um filme e uma estátua
Se eu fizesse o pino, a arte ressuscitava
E um urinol voltava a ser um urinol
Mas eu não sou um ginasta”
Temos vários pontos para analisar nestas duas quadras do tema. O Niilismo apresenta uma visão cética sobre todas as conceções da realidade, afirmando que não existe qualquer sentido objetivo para a vida e que todo o ser humano é completamente insignificante, bem como todas as verdades apresentadas pela espécie, tais como a teoria da seleção natural de Darwin, que Nerve diz negar, bem como grande parte da história que lhe ensinaram.
Repare-se, também, que Nerve faz um alusão ao dadaísmo, corrente artística que se pauta pelas mesmas premissas do Niilismo, querendo aniquilar todo o sentido da beleza da arte, quando fala do urinol. O urinol a que Nerve se refere é uma das obras de arte mais representativas do dadaísmo, denominado de “A Fonte”, concebido por Marcel Duchamp em 1917. Nerve diz que mesmo que se fizesse o pino, a arte ressuscitaria e esse urinol deixava de ser uma obra de arte, voltando à sua natureza original, mas que, no entanto, esse não é o trabalho dele. Esta faixa termina dizendo:
“Temos tanta coisa em comum
Grande coincidência
É tão grande, a coincidência
Devíamos fazer qualquer coisa juntos
Temos tanta coisa em comum“
É aqui que Nerve se atira aos seus próprios fãs. Estes versos finais, interpostos por sons de risos, mostram o desdém com que olha para os momentos em que os seus “fãs” se dizem rever nele. O sarcasmo sugere fortemente que Nerve considera que estes não atingem o verdadeiro significado das suas palavras, não atingem o verdadeiro sentimento que o trespassa. Este produz a sua música como forma de expressão própria, não para os fãs se poderem identificar.
Peguemos agora no tema Cartas como o Gambit. Ora, para quem não sabe, o Gambit é um super-herói criado pela Marvel, cuja habilidade passa por atacar os inimigos com cartas. Este tema começa com alguém desconhecido a dizer que Nerve “baralhou e voltou a dar cartas…”e é a partir daqui que ele desdobra todo o seu ódio para com a expressão “dar cartas”, querendo dizer que quem dá cartas é o Gambit e não ele. Refere ainda: “A história dita a regra. Então perante o panorama / Herói, tu põe as mãos no fogo mas só na parte azul da chama“, criticando aqueles que se auto-intitulam de heróis mas que, no entanto, pouco ou nada se esforçam para merecer tal adjetivo, colocando as mãos no fogo pelos outros, mas apenas na parte azul da chama, onde o calor do fogo não é tão insuportável assim.
É também nesta faixa que o artista se atira aos falsos rappers, rematando uma punchline “Ó amigo, só tinhas MC no nome se nascesses na Escócia…“, país onde o “Mc” antes do nome significa “filho de…”, fazendo uma brincadeira de palavras com a expressão “Mic Controller” usada no hip-hop.
Analisemos agora uma das músicas mais sonantes do álbum: Monstro Social. Este tema é um dos mais ouvidos do artista e é dos que mais critica a sociedade, embora sempre de maneira disfarçada, através de metáforas e outras figuras de estilo. Um dos versos que podemos analisar é, na minha opinião, um dos mais elucidativos no que toca a explicar quem é Nerve. A meio da música, o rapper diz:
“Eu não fiquei demente, entenda-se:
Este navio não entrou na garrafa, foi construído lá dentro“.
E o que significa isto? Ser demente é ter algum distúrbio mental. Em linguagem popular, “ser maluco”. Nerve utiliza esta metáfora para explicar que não ficou demente, pois não houve nada que o causasse, mas que já nasceu assim, ou seja, esta demência já lhe foi atribuída desde o início da sua vida.
Deste modo, o navio (demência) não entrou na garrafa (Nerve, ou o seu cérebro), mas sim foi construído lá dentro (surgiu de dentro dele). Se prosseguirmos na música, escreve: “Quando é que sai o álbum? / Aprecio o entusiasmo mas quando eu quiser que saibas trato de fabricar um diálogo“, como que respondendo aos fãs que lhe pedem novos álbuns, dizendo que quando for para sair, ele logo falará, quando sentir necessário. Atente-se agora no refrão:
“Eu socializo
Então, man? Como é que é? ‘Tá-se bem?
Ya, Tranquilo. ‘Tamos aí, normal. Novidades?
Eu socializo
Boa noite, como está? Passou bem?
Bem, obrigado. Cá estamos. Como vai o trabalho?
À primeira vista, olhamos para este refrão e pensamos que o artista é estranho e que possivelmente estaria sob o efeito de drogas quando o escreveu, mas a verdade é que é muito fácil perceber o que Nerve quer dizer com o refrão. Basicamente, este retrata os diálogos “cliché” da nossa sociedade, numa primeira parte com a maioria dos nossos amigos, e posteriormente com colegas de trabalho ou pessoas ditas mais “sérias”. Numa parte final da música, escreve:
“(…) enquanto o meu amigo imaginário me escreve as letras
É um monstro social que nunca dança
mas lança sons em vida que nem um Shakur na campa”
Este monstro social a que se refere é ele mesmo, o seu lado obscuro, e diz que é esse monstro que lhe escreve as letras, mas que, no entanto, o faz em vida assim como Tupac Shakur na campa, visto que grande parte do reportório do rapper lendário dos anos 90 foi lançado postumamente.
A última faixa que iremos dissecar é também a última música do álbum e chama-se Lenda. Este tema serve para o artista se apresentar, como que explicando o que é, o que faz e porque é que o faz. Um dos versos mais representativos é o seguinte:
“Já estou a ver os fãs com náuseas, a sair da sala, tipo:
“fo**-se, eu paguei para ver um espectáculo, este gajo está a brincar com a malta”
Interacção com o público? Eu? Eu subo ao palco e tenho um monólogo”
Com isto, o rapper coloca-se no lugar dos seus fãs, que vão assistir a um concerto dele e que, provavelmente, esperariam ver um artista em comunhão com o público mas que, de facto, apenas mantém um monólogo assim que entra em palco (o que, por experiência própria, é meio verdade). Mais à frente Nerve diz:
“E não estou nisto para, mais tarde
Ter o prazer de dizer “filho, olha o que eu fiz com a tua idade”
Mas sim para, quando ele perguntar “porque é que a mãe nos deixou e não há comida na mesa?”, eu lhe pregar uma lição acerca de prioridades“
É aqui que Nerve nos mostra que a sua principal prioridade é fazer música, não para no futuro se orgulhar daquilo que outrora tinha sido, mas sim como meio de simples ganha-pão, num país em que tal é difícil para quem faz música. Como já nos têm vindo a habituar, é aqui também que entra mais uma vez a visão antropocêntrica de Nerve, principalmente no refrão da música:
“Quem? Eu? Não sabeis? Uma lenda
Quem eu sou? Uma Lenda“
Neste refrão, enaltece a sua própria pessoa, não como Tiago Gonçalves, mas como Nerve, pedindo mesmo perdão à sua mãe por “eternizar-me por nome este, em vez do nome que por mim escolheste” e termina ainda dizendo que “se, por ventura, a minha conduta não se coaduna com os “princípios e parâmetros de avaliação de carácter” desta escumalha, então quero mais é que morram longe”. É com este verso que Nerve termina, não só esta música, mas todo o álbum.
Nerve apresentou-se com um estilo diferente daqueles que vimos nos últimos anos, destacando-se não só por isso, como também pela sua genialidade no que toca à escrita, pela originalidade, pelas referências que faz nos diversos temas mas, principalmente, pelo facto de ser algo diferente. Talvez por ser diferente, nem todos conseguem perceber o que o artista pretende expor, acabando por vezes por ser mal-interpretado e acusado de não ter coerência, sentido algum e lógica.
No entanto, todas essas críticas vão ao encontro daquela que é a corrente de pensamento de Tiago Gonçalves, o Niilismo, e tal não afeta o rapper de maneira alguma. É difícil explicar por palavras todos os detalhes deste álbum, muito menos num simples artigo de jornal, mas em jeito de conclusão é possível dizer que Nerve trouxe ao panorama musical português um novo conceito de música, apresentando-se como um artista bastante completo. Sem dúvida um artista para acompanhar.
Classificação TDSessions: 8.5/10
Escrito por: Bruno André
Editado por: Daniela Carvalho
Excelente conteúdo é publicado por aqui. Voltarei mais vezes!
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