É dia de eleições num país imaginário e sem nome. O domingo nasce chuvoso na capital e, assim, poucos eleitores comparecem para votar durante a manhã, para desespero das autoridades locais que, preocupadas, previam uma abstenção gigantesca. No entanto, à tarde, com a melhoria do tempo e quase no encerramento da votação, centenas de milhares de eleitores apresentam-se nos locais de eleição.
Este último cenário tornara-se animador e as filas quilométricas traduziam-se num aspeto que dava normalidade a todo o processo eleitoral, mas meia-noite passada e o escrutínio termina: poucos votos nulos, poucas abstenções e mais de 70% dos votos em branco!
Este resultado não agrada ao poder que, determinado, decide atuar repressivamente contra aqueles que tiveram o atrevimento de tal loucura, culpando-os da situação: “Vós, sim, sois os culpados, vós, sim, sois os que ignominiosamente haveis desertado do concerto nacional para seguirdes o caminho torcido da subversão, da indisciplina (…)”, sem se dar conta de que os cidadãos não perdem nem abdicam do seu poder ao introduzir o voto nas urnas. Também por isso, a população não cede à manipulação, mantendo-se firme e com dignidade perante a violência do Estado.
Os governantes, sentindo-se ameaçados, trataram de agir em nome da ordem, perseguindo, prendendo e maltratando. Como era de esperar, as instituições, partidos políticos e autoridades perderam a credibilidade da população. Sucederam-se episódios diversos, uns dirigidos pelo poder para amedrontar, outros espontâneos, de pessoas que reclamam o direito e o dever de organizar o presente e o futuro do seu país, atos comprovativos de que a população não perdera a lucidez. O voto em branco fora uma manifestação inocente devido à revolta e ao cansaço dos eleitores que estavam indignados com a política exercida.
É neste seguimento que se desenvolve a tramada obra: o governo e as autoridades deixam a cidade entregue a si própria, abandonando-a e isolando-a ao transferirem a capital do país para outro local, deixando a cidade sem policiamento e sem condições de abastecimento.
Subitamente, porém, a história sofre uma mudança de rumo. Na busca de um bode expiatório o governo esbarra numa das personagens centrais de Ensaio sobre a Cegueira: a única mulher que mantivera a visão e que testemunhou os horrores de uma sociedade tomada pelo caos.
Deste modo, Ensaio sobre a Lucidez não só dá continuidade aos acontecimentos de Ensaio sobre a Cegueira, como também recupera algumas das suas personagens. A primeira surgiu quando, depois da tensão que se instalou após as eleições, o primeiro cego escreveu uma carta ao Presidente da República em que acusa a mulher do médico (personagem de “Ensaio sobre a Cegueira”) de ser a responsável pelos prováveis inimigos do governo. Na carta, refere o facto de ela ter sido a única pessoa imune à cegueira branca que se alastrou no país quatro anos antes. Esse ato gera uma investigação liderada por um comissário de polícia que se põe a inquirir e a vigiar as personagens oriundas do romance anterior.
Com a busca desenfreada por um culpado o governo tenta fazer da mulher do médico o bode expiatório e, assim, envia todos os esforços com o objetivo de encontrar os culpados de toda esta situação, mesmo que estes não existam; nem que para isso tenham de ser inventados.
Ao nos remetermos para o fim da obra podemos constatar um final trágico, especialmente para o comissário que liderava a investigação que morreu com um tiro na cabeça e para a mulher do médico que depois de dois tiros sucessivos caiu inanimada no chão. Fim idêntico teve o seu cão, o cão das lágrimas: “veio a correr lá de dentro, fareja e lambe a cara da dona, depois estica o pescoço para o alto e solta um uivo arrepiante que outro tiro imediatamente corta”. Mortes, estas, causadas pelo misterioso homem de gravata azul com pintas brancas.
O Ensaio sobre a Lucidez define-se, portanto, como uma metáfora mais que expressiva que expõe as fragilidades e a deteorização de um sistema político e o arcaísmo das ideologias que o sustêm. Por outro lado, é uma parábola sobre o desleixo, comodismo e egoísmo pessoal do cidadão comum que não intervém na sociedade no sentido de promover alterações aos eixos sobre os quais se apoia o governo.
Todas estas mensagem presentes na obra são-nos fornecidas em resultado da ironia refinada a que nos habituou o Nobel da Literatura português, ironia essa, que desde cedo, plantou em mim um enorme fascínio na escrita e personalidade de José Saramago.
Escrito por: Vanessa Santos
Editado por: Rita Rogado